A questão da classificação contábil do capital social das Sociedades Cooperativas vem sendo amplamente discutida pelos profissionais da área contábil e agora o assunto passa a preocupar também as entidades que representam o sistema, bem como os dirigentes das cooperativas.
O assunto é tratado na ICPC 14, originalmente aprovada pela Resolução CFC nº 1.324/11, para vigência a partir de 1º de janeiro de 2012, tendo sua aplicabilidade adiada para 1º de Janeiro de 2016, em razão da publicação da Resolução CFC nº 1.365, de 29/11/2011.
A ICPC 14 se propõe a disciplinar o critério de classificação contábil das cotas-partes (entre patrimônio líquido ou passivo), para o montante do capital social e não apenas para as cotas dos cooperados demitidos, eliminados ou excluídos, em conformidade com a prática atualmente adotada.
A ICPC 14 sugere o entendimento de que as cotas-partes dos cooperados se classificam como instrumento financeiro e não instrumento patrimonial, induzindo ao entendimento de que referidas cotas-partes sejam classificadas no passivo, exceto nas hipóteses em que houver “proibição de resgate” e nas situações em que a Cooperativa tem o “direito incondicional de recusar o resgate”. Ao mesmo tempo, a ICPC especifica que as cotas-partes de cooperados seriam classificadas como patrimônio líquido, se os membros não tivessem direito de solicitar resgate. Salvo melhor juízo, entendemos que somente é permitido o resgate das cotas de capital após o desligamento do cooperado, ou seja, enquanto ele permanecer como sócio, efetivamente existe a proibição de resgate das cotas de capital, portanto as mesmas devem permanecer classificadas no patrimônio líquido, inclusive por tratar-se de instrumento patrimonial e não financeiro.
No item 7 do consenso da ICPC 14, descreve-se que as cotas-partes de cooperados constituem patrimônio líquido, se a entidade tiver um direito incondicional de recusar resgate das cotas-partes dos cooperados, enquanto que no item 8 do consenso, consta que, se o resgate estiver proibido de forma incondicional pela legislação, regulamento ou estatuto da entidade, as cotas-partes dos cooperados constituem patrimônio líquido.
Antes de mais nada, é preciso observar que a ICPC 14 corresponde a simples tradução da IFRIC 2, e sua aplicabilidade no Brasil deve observar os aspectos peculiares das nossas entidades cooperativas e não meramente pela interpretação literal do texto da norma original.
Apenas para exemplificar, o item 4 da ICPC 14 traz a seguinte redação: “Muitos instrumentos financeiros, incluindo as cotas de cooperados, possuem características de patrimônio líquido, incluindo direitos de voto e direitos de participar na distribuição do resultado”. Sabe-se que a legislação brasileira não permite direito a voto ao capital dos cooperados e muito menos a participação na distribuição do resultado, logo, percebe-se que o teor da norma não deve ser literalmente aplicado no Brasil, pois não foram observados os requisitos essenciais do nosso direito.
Por outro lado, considerando que o texto da ICPC 14 não foi traduzido com base na realidade brasileira, sinceramente nos parece que ele confunde mais do que esclarece, inclusive porque nos exemplos, que deveriam ser elucidativos, fala-se em ações ordinárias e ações preferenciais, algo que não condiz com a nossa realidade.
No contexto de todo o conjunto das normas de contabilidade, observamos que a NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL – Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro, aprovada pela Resolução CFC nº 1.374/11, traz algumas definições relevantes que devem ser consideradas para analisar o tratamento contábil das cotas de capital social nas sociedades cooperativas.
Segundo a própria NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL, em seu item 4.4., evidencia-se o seguinte conceito de passivo: (b) passivo é uma obrigação presente da entidade, derivada de eventos passados, cuja liquidação se espera que resulte na saída de recursos da entidade capazes de gerar benefícios econômicos.
Uma característica essencial para a existência de passivo é que a entidade tenha uma obrigação presente. Uma obrigação é um dever ou responsabilidade de agir ou de desempenhar uma dada tarefa de certa maneira. Além disso, no item 4.16., a NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL estabelece que deve-se fazer uma distinção entre obrigação presente e compromisso futuro. Ora, não há de se falar em obrigação enquanto o capital social é subscrito e integralizado com a finalidade de dar suporte ao desenvolvimento do negócio cooperativo, tanto que no caso de eventual liquidação da sociedade, os associados se obrigam a integralizar as cotas-partes subscritas, para atender os compromissos e obrigações perante terceiros e a devolução dessas cotas somente será possível após o atendimento integral das obrigações da sociedade.
A cooperativa é uma sociedade de pessoas, constituída para prestar serviços aos seus associados, logo, o capital social subscrito e integralizado é patrimônio da entidade e este capital social será de uso exclusivo para garantir as obrigações perante terceiros, tanto que não pode ser cedido a terceiros, estranhos à sociedade .
Sendo assim, nota-se que a própria Lei nº 5.764/71, já estabeleceu que o capital social não se enquadra no conceito de passivo, tanto que a lei impõe a obrigação aos cooperados de integralizarem as cotas de capital, quando o ativo não for suficiente para a solução do passivo.
Ademais, se o capital fosse classificado em conta de passivo, seria totalmente contraditório solicitar aos associados o aumento do capital social, no caso de eventual crise financeira ou necessidade de aporte de recursos para a realização de novos investimentos, pois ao invés de aumentar o patrimônio líquido, estaria se aumentando as dívidas. Daí se nota o entendimento equivocado em querer classificar o capital social como instrumento financeiro a ser registrado no passivo. Além disso, o saneamento financeiro das cooperativas, em muitos casos passaria pela necessidade de devolução de capital aos cooperados, o que também denota o entendimento equivocado.
O item 4.1. da NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL, que trata do pressuposto da continuidade, estabelece o seguinte:
- 4.1. As demonstrações contábeis normalmente são elaboradas tendo como premissa que a entidade está em atividade (going concern assumption) e irá manter-se em operação por um futuro previsível. Desse modo, parte-se do pressuposto de que a entidade não tem a intenção, nem tampouco a necessidade, de entrar em processo de liquidação ou de reduzir materialmente a escala de suas operações. Por outro lado, se essa intenção ou necessidade existir, as demonstrações contábeis podem ter que ser elaboradas em bases diferentes e, nesse caso, a base de elaboração utilizada deve ser divulgada.
Nas Sociedades Cooperativas, existe o pressuposto da continuidade do negócio e a consequente manutenção do capital social.O capítulo 3 da NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL, que trata das características qualitativas da informação contábil-financeira útil, assim estabelece:
- QC4. Se a informação contábil-financeira é para ser útil, ela precisa ser relevante e representar com fidedignidade o que se propõe a representar. A utilidade da informação contábil-financeira é melhorada se ela for comparável, verificável, tempestiva e compreensível.
Se o capital social não for mantido no patrimônio líquido, enquanto o cooperado permanecer como sócio, a situação nas demonstrações contábeis estará sendo representada de forma inadequada, pois simplesmente não condiz com a realidade. Ademais, como poderíamos comparar os indicadores financeiros das cooperativas com empresas similares, se o critério de classificação do capital social for diferente?
Mais adiante, no item QC12, a NBC TG ESTRUTURA CONCEITUAL define que “Para ser útil, a informação contábil-financeira não tem só que representar um fenômeno relevante, mas tem também que representar com fidedignidade o fenômeno que se propõe representar. Para ser representação perfeitamente fidedigna, a realidade retratada precisa ter três atributos. Ela tem que ser completa, neutra e livre de erro”.
Um dos novos pilares da contabilidade é o princípio da “Primazia da Essência sobre a Forma”, o qual reza o seguinte:
- Para que a informação represente adequadamente as transações e outros eventos que ela se propõe a representar, é necessário que essas transações e eventos sejam contabilizados e apresentados de acordo com a sua substância e realidade econômica, e não meramente sua forma legal. A essência das transações ou outros eventos nem sempre é consistente com o que aparenta ser com base na sua forma legal ou artificialmente produzida. Ao avaliar se um item se enquadra na definição de ativo, passivo ou patrimônio líquido, deve-se atentar para a sua essência e realidade econômica e não apenas sua forma legal.
Ainda que as sociedades cooperativas tenham como característica a livre adesão dos sócios e a variabilidade do capital social, o capital somente se torna exigível após o desligamento do cooperado da sociedade. Na essência, o patrimônio líquido se mantém. Estudos demonstram que nos diversos ramos das cooperativas, o capital social tem aumentado progressivamente, seja pela capitalização das sobras, retenção da produção dos cooperados, ou ainda pelo ingresso de novos sócios. Sendo assim, ainda que alguns associados se desligam da sociedade, hipótese em que o capital é reclassificado para o passivo, nota-se o crescimento do capital social, o que impõe a sua manutenção no patrimônio líquido, simplesmente porque na essência o capital fortalece o patrimônio da sociedade e não aumenta as suas dívidas.
Os itens 19 e 24 da NBC TG 26 – Apresentação das Demonstrações Contábeis, aprovada pela Resolução CFC nº 1.185/09 e alterada pela Resolução CFC nº 1.376/11, estabelecem:
- 19. Em circunstâncias extremamente raras, nas quais a administração vier a concluir que a conformidade com um requisito de pronunciamento, interpretação ou orientação conduziria a uma apresentação tão enganosa que entraria em conflito com o objetivo das demonstrações contábeis estabelecido na Estrutura Conceitual para a Elaboração e Apresentação das Demonstrações Contábeis a entidade não aplicará esse requisito e seguirá o disposto no item 20…
- 24. Para a finalidade dos itens 19 a 23, um item de informação entra em conflito com o objetivo das demonstrações contábeis quando não representa fidedignamente as transações, outros eventos e condição que se propõe a representar ou que se poderia esperar razoavelmente que represente e, consequentemente, seria provável que influenciasse as decisões econômicas tomadas pelos usuários das demonstrações contábeis.
O item 19 da NBC TG CPC 26 – Apresentação das Demonstrações Contábeis parece dar os lineamentos mais adequados, quando estabelece que, se a aplicação de um pronunciamento, interpretação ou orientação conduzir a uma apresentação enganosa, o pronunciamento não deve ser aplicado, mas, sim, apenas divulgada a prática adotada. Enquanto os cooperados fazem parte da sociedade, as quotas de capital devem ser mantidas no patrimônio líquido, pois, ao contrário, as demonstrações contábeis estariam reproduzindo uma situação enganosa, prejudicando a qualidade e a utilidade das informações divulgadas, gerando influência negativa na tomada de decisões pelo uso dessas informações.
Importante também considerar que no caso dos órgãos reguladores, como é o caso do Banco Central do Brasil (BACEN), Agência Nacional de Saúde (ANS) e Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), muito provavelmente não será admitida a reclassificação do capital social das cooperativas para o grupo do passivo, pois este procedimento simplesmente inviabilizaria esses setores, pela exigência do capital mínimo que define margens de solvência, grau de liquidez, limite operacional dentre outros. Também existe a situação das cooperativas que participam de processos licitatórios, onde o capital social é fator preponderante para a garantia de operações perante os contratantes.
Assim sendo, inadmissível seria alguns tipos de cooperativas registrarem o capital social no patrimônio líquido e outros no passivo, pois os princípios legais e doutrinários são os mesmos, inclusive criaria enorme conflito técnico na análise da essência do capital, perante outros tipos societários.
Além disso, cumpre destacar que as demonstrações contábeis das sociedades cooperativas devem permitir a comparabilidade com as demais entidades atuantes em seus respectivos ramos e para isso é necessário adotar os mesmos critérios para apresentar suas situações econômica, financeira e patrimonial.
Diante de todo o exposto, é inegável que o capital social das cooperativas deve ser registrado no patrimônio líquido da sociedade, pois o capital social foi instituído pela Lei nº 5.764/71, não como um instrumento financeiro na forma de empréstimo e sujeito à devolução, com prazo estabelecido, e sim como aporte de recursos que integra o capital próprio, com a finalidade de dar o suporte necessário à realização dos investimentos para a consecução do objeto social da cooperativa. Inegável também que no caso de desligamento dos cooperados, seja por demissão, eliminação ou exclusão, a parcela do capital social que lhes cabe deve ser reclassificada para o passivo, pois aí ocorre o evento que determina um novo enquadramento, deixando de ser parte do capital próprio e passando a ser uma obrigação.
Ao tratar do consenso, a ICPC 14 lança inúmeras dúvidas e condições para uma classificação tanto como passivo financeiro como patrimônio líquido. O que a ICPC não reconhece ou não esclarece é que enquanto o associado quiser usufruir dos serviços que a cooperativa lhe presta o resgate de seu capital está incondicionalmente proibido, e como tal é parte do Capital Social da cooperativa. Isto é parte integrante do espírito da lei cooperativista e do estatuto de qualquer cooperativa. O que ambos também dizem e permitem é que no momento que o associado quiser dispensar os serviços da cooperativa, o pode fazê-lo, através da demissão. Neste momento cria-se um passivo financeiro para a cooperativa, como até agora todas as cooperativas brasileiras assim procederam. Trata-se, portanto, de uma relação legal entre o associado e sua cooperativa. Enquanto usufruir dos serviços, seu capital é intocável, irresgatável de forma incondicional. É o que reconhece o item 4 da ICPC 14: “Muitos instrumentos financeiros, incluindo as cotas de cooperados, possuem características de patrimônio líquido”. Esta é a essência da participação de um associado numa cooperativa: operar, participar, votar, ser eleito, gozar de benefícios e participar dos resultados. Para tanto, seu capital está lá, disponível para investimentos da cooperativa, mas limitado quanto ao seu resgate, enquanto associado.
Portanto, no nosso entendimento a ICPC 14 traz uma interpretação inócua, que mais confunde do que esclarece e que não tem base para enquadramento do Capital Social como um passivo. Nosso entendimento é que o Capital Social das sociedades cooperativas, mesmo sendo de propriedade individual de cada associado, está a serviço da cooperativa, constituindo-se seu capital próprio, enquanto o associado for parte integrante da sociedade.
Finalizando, devemos reconhecer que o novo regramento contábil inovou conceitos, aprimorou práticas contábeis e passou a exigir maior capacitação sobre como aplicar julgamentos, análise e pensamento crítico à contabilidade, eis que os registros deixaram de ser feitos com base em regras e fórmulas prontas. Todavia, para que a contabilidade efetivamente seja útil, ela deve produzir informações fidedignas capazes de inspirar mais credibilidade e confiabilidade às informações e isto somente será possível se forem respeitados os princípios pilares da contabilidade, fundamentalmente com respeito ao princípio da “Primazia da Essência sobre a Forma”.
——————-
* Dorly Dickel, Contador, Administrador de Empresas, possui curso de pós-graduação em cooperativismo, Instrutor de cursos para o sistema OCB/Sescoop, Professor em cursos de pós-graduação, membro do Comitê contábil/tributário da OCB, membro da Comissão de Estudos de Contabilidade do Setor Cooperativo no CRC/RS, sócio da DICKEL & MAFFI – Auditoria e Consultoria S/S e da DSM Consultores Associados S/S.
Concordo plenamente com o exposto no artigo.
Entendo que o CPC deveria proteger o capital das cooperativas, sugerir e criar mecanismos para assegurar a continuidade e perenidade das cooperativas, e não ficar insistindo nesta “reclassificação” incoerente com a prática e realidade das cooperativas.