“Foi o tempo que investiste em tua rosa que fez tua rosa tão importante”.
(Antoine de Saint-Exupéry – em “O pequeno príncipe”)
Já se disse por diversas vezes que o marco regulatório aplicável ao cooperativismo financeiro brasileiro, por sua generosidade, hoje deixa pouco espaço para reivindicações de “atacado”.
Mundo afora – como já havíamos destacado em recente artigo publicado neste mesmo veículo -, a busca por leis e regulamentos mais flexíveis e indutores de um maior poder de competição das instituições financeiras cooperativas é uma das principais aspirações do setor, o que, segundo sabemos nós – e eles reivindicam – passa por uma interlocução mais profícua entre o movimento, reguladores e respectivos órgãos de supervisão.
A atual amplitude da matriz normativa, por sinal, molda-se à perfeição ao disposto no §2º do art. 174 da Constituição Federal, dispositivo-referência a determinar que “A lei apoiará e estimulará o cooperativismo…”.
Por aqui, uma vez que o essencial está mais do que atendido – fruto de longos anos de amadurecimento da indústria e de sua relação com o Governo -, já se parte para um novo estágio.
Com efeito, o conjunto de medidas anunciadas pelo Banco Central do Brasil (Bacen) no dia 18 de novembro último aponta para a sofisticação do modelo.
A permissão para a emissão de Letras Financeiras, objeto da Resolução nº 4.382, do Conselho Monetário Nacional (CMN), visa ao fortalecimento da estrutura patrimonial das cooperativas e, à luz do que preconiza a parte final do art. 2º da Lei Complementar nº 130, de 2009 (LC 130/09), e o seu nivelamento com o mercado. Com esse instrumento, por ora de uso restrito, as entidades mutualistas terão à disposição novo mecanismo de atração de recursos (estáveis) para compor o capital regulamentar (Patrimônio de Referência). Por serem investimentos de prazo longo, servirão também de lastro para atender a demandas de crédito de idêntica duração.
A revisão da ponderação de risco de ativos intrassistema (créditos, depósitos e garantias), nos termos da Circular Bacen nº 3.730/14, aumenta a eficiência da estrutura patrimonial do conjunto das entidades (cooperativas singulares, centrais, confederações de crédito e bancos cooperativos), pondo-se em sintonia com os novos níveis de governança experimentados pelo setor, cuja evolução recente demonstra aperfeiçoamento dos vínculos sistêmicos de forma a possibilitar a redução da exigência de capital nas operações entre instituições integrantes desses sistemas, abrindo caminho para a desejada implementação formal do conceito de conglomerado cooperativo.
Por certo, os motivos que determinaram referido ajuste, pena de conflito conceitual e anulação de efeitos em relação às cooperativas submetidas ao regime prudencial completo (RPC) e aos bancos cooperativos, haverão de ser ponderados também na elaboração do texto final do normativo sobre a Razão de Alavancagem (RA), cuja minuta fora aberta à participação pública através do Edital Bacen nº 44/2014.
Adicionalmente, a redução da ponderação de risco da carteira de crédito das cooperativas submetidas ao regime prudencial simplificado (RPS), de 85% para 75%, reforça a percepção de melhoria da capacidade de gestão de crédito dessas entidades, equiparando-as ao mesmo requerimento exigido das demais instituições de crédito nas exposições em carteiras de varejo, onde o segmento de fato atua. Mais do que um bônus do regulador, ambas as medidas devem ser vistas como um voto de confiança na capacidade das cooperativas de gerenciarem adequadamente seus riscos e responderem de forma adequada e coordenada às contingências e perdas inerentes ao processo de intermediação financeira.
Como corolário, os avanços impulsionam a organização sistêmica e desencorajam a desfiliação irrefletida.
Por sua vez, a iniciativa que prevê a criação de cooperativas de crédito que tenham por objeto a prestação de garantias em operações creditícias (Edital Bacen de Consulta Pública nº 46/2014), cuja modalidade cooperativa encaixa-se na dicção do art. 5º da Lei Cooperativista (Lei nº 5.764, de 1971), pretende suprir um obstáculo inerente às micro e pequenas empresas, que enfrentam dificuldades para oferecer garantias compatíveis com suas necessidades de financiamento. A estimativa de incremento de funding a respaldar créditos de capital de giro e de investimento para o pequeno negócio (público associado) está baseada no fato de o novo ente, como instituição financeira (de atuação limitada) que é, submeter -se à supervisão do Bacen, com a segurança daí decorrente (controle de acesso, regulação e fiscalização).
Já o conjunto de proposições a, nos termos da minuta veiculada pelo Edital Bacen de Consulta Pública nº 47/2014, comporem o normativo sucessor da Resolução nº 3.859/2010, do Conselho Monetário Nacional (CMN), trará importantes novidades no que se refere à segmentação das cooperativas.
Subdividido em cooperativas “plenas” (atuais componentes do grupo RPC), “clássicas” (do grupo RPS) e “de capital e empréstimo” (grupo que não capta depósitos), o setor poderá usufruir de carga regulatória mais equilibrada, conferindo-se atenção adequada e proporcional conforme o grau de complexidade operacional e os níveis de risco de cada entidade (“plenas”, com maior custo regulatório; “capital e empréstimo”, com menor custo regulatório). No novo cenário, acaba a complexa classificação hoje existente entre cooperativas segmentadas, semiabertas e abertas (arts. 12 e 13 da Resolução CMN nº 3.859/2010), passando a existir apenas o tipo “cooperativa de crédito”, passando o nível de abertura do quadro social a ser definido estatutariamente, pela assembleia geral, em alinhamento com o disposto no art. 4º da LC nº 130/09.
Também a governança sofrerá relevante adequação, já que apenas as cooperativas “plenas” (todas) e as “clássicas” com ativos a partir de R$ 50 milhões terão de adotar conselho de administração e diretoria executiva, no entanto com segregação absoluta entre os órgãos, pois não mais será permitido a (qualquer) membro do conselho compor o colegiado executivo.
Na sua concepção, o futuro normativo dará, ainda, um passo adiante em relação à consolidação sistêmica, pois avançará nas condições a serem atendidas pelas cooperativas singulares que venham a optar pela desfiliação, estabelecendo que previamente a essa medida sejam remetidas ao Bacen informações que permitam avaliar a capacidade de as cooperativas sem filiação funcionarem de forma segura sem os serviços até então providos pelas entidades de grau superior.
Finalmente, quanto às diversas estruturas de auditoria hoje existentes, a novidade vem representada pelo incentivo a entidades especializadas em auditoria cooperativa (conhecidas como “EAC”) – modelo CNAC, com funções ampliadas -, conforme dá conta o Edital Bacen de Consulta Pública nº 48/2014. A ideia, aqui, de acordo com a prerrogativa concedida pela LC nº 130/09, é instituir uma auditoria cooperativa com escopo especializado, de natureza universal (alcançando todas as cooperativas de crédito singulares, filiadas ou não) e que operará em escala para produzir trabalhos com a qualidade demandada pelo segmento.
A minuta de resolução permite a integração entre a auditoria interna e a externa (cuja periodicidade, nesse caso, se reduz), formando na sua conjugação a “auditoria cooperativa”, medida que induz à racionalização dos dois blocos de atividades. Todas as cooperativas serão obrigadas a submeter-se a uma EAC no que se refere à auditoria interna (inspeção direta), com o que fica dispensada a realização dessa mesma atividade pelas cooperativas centrais. Quanto à auditoria externa, embora possa também ser executada por uma EAC, permanece facultada a contratação de empresas não especializadas ou de mercado.
As EAC (confederações cooperativas especializadas em auditoria cooperativa) serão submetidas ao controle do Bacen e operarão com um roteiro mínimo/padrão, definido pelo órgão de supervisão, circunstância que, em linha com a literatura econômico-financeira internacional, fortalecerá o Fundo Garantidor do Cooperativismo de Crédito (FGCoop), dando mais conforto às entidades vinculadas ao Fundo e corresponsáveis solidárias pelos créditos do conjunto dos cooperados. Aliás, o desejável – em perspectiva – é que as EAC tenham uma ligação societária mais íntima com o FGCoop, como ocorre, por exemplo, no cooperativismo financeiro alemão, de onde provém a inspiração para a solução brasileira.
Em síntese, esses movimentos regulamentares, de cunho mais “cirúrgico”, ao lado do aprimoramento da governança interna a partir dos indicativos colhidos – e também há pouco divulgados – em pesquisa do Bacen para essa finalidade (veja o resultado consolidado em: http://www.bcb.gov.br/pec/appron/apres/pesquisa_governanca_2013_2014_internet.pdf), tornarão o sistema financeiro cooperativo ainda mais sólido e o colocarão em um novo patamar de competitividade.
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Ênio Meinen é advogado, pós-graduado em direito (FGV/RJ) e em gestão estratégica de pessoas (UFRGS) e autor/coautor de vários livros sobre cooperativismo financeiro – área na qual milita há mais 30 anos -, entre eles “Cooperativismo financeiro: percurso histórico, perspectivas e desafios”. Atualmente, é diretor de operações do Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob).
Amigo Enio, lúcido, preciso e conciso, excelente artigo para os estudiosos e acompanhadores da evolução do cooperativismo de crédito na Brasil, é uma referencia que instrumentaliza nossas2 posições. Abraços
Caro Ênio! Sempre esclarecedor, objetivo e colocando os cooperativistas, especialmente os dirigentes para pensar: porque asim mesmo somos tão pequenos?
abraço.
O artigo do autor como sempre, é muito rico de informação. Conteúdo exposto de forma clara e objetivo.