Alguns termos jurídicos vêm ganhando notoriedade diante da sua popularidade promovida pela intensa mídia que relata os graves casos de corrupção em nossa sociedade, entre eles se destaca o instituto da “Delação Premiada”. Ele pode ser resumido em uma troca de favores entre o juiz e o réu, que ao fornecer informações consideráveis que ajudem a solucionar um crime, tem sua pena substancialmente reduzida. Mas será que as nossas garantias reais não deveriam fazer delações premiadas, caso estivessem acobertando algumas imperfeições em nossos processos creditícios? Vamos refletir sobre esse tema tão relevante, visando reposicionar ou validar nossas crenças.
Fato inconteste: Garantias reais bem estruturadas são realmente um enorme diferencial na condução de um crédito. Entretanto, essa substancial garantia estará cada vez menos presente nas futuras carteiras creditícias de nossas Singulares, pois o dinamismo do mercado, o tratamento das informações e o crescimento da base sobre clientes urbanos naturalmente farão com que o crédito migre para outras modalidades de garantia, hoje ditas mais frágeis, ou mesmo migre para créditos sem garantias formais em troca de taxas que precifiquem esse risco, como já fazem com maestria nossos concorrentes. Esse contexto foi abordado em nosso artigo de 06/2016: “Taxa de juros é uma ótima garantia”, onde, entre outras reflexões, demonstramos que os clientes adimplentes de uma determinada linha e safra de crédito naturalmente fazem crescer mês a mês um rico “Fundo Garantidor” que serve perfeitamente como um ótimo colchão de liquidez para este grupo comum de devedores. Essa nossa abordagem é arrojada e inusitada, e apresenta um interessante conceito.
Garantia Real não defende crédito: Há uma premissa equivocada de que a garantia real é um ótimo argumento para defender um crédito, tanto que ainda se vê essa prerrogativa ganhar extrema notoriedade em alguns pareceres de crédito, nos induzindo a praticar menores taxas e maiores prazos e limites. Não há dúvidas que a garantia real é um enorme diferencial na segurança do crédito e deve, sempre que existir, ser mencionada como um dos inúmeros itens relevantes na defesa de um crédito, mas nunca como o mais relevante tópico desse parecer. Devemos sempre recordar que nosso negócio é de risco, já que todo crédito traz em sua taxa uma perda esperada e que essa deveria estar muito bem precificada com base na crença de que uma pequena parcela desses clientes não irá manter suas atuais habilidades de gerar riquezas para nos pagarem. Nesse cenário, vê-se que uma garantia é um complemento na análise do risco, e, portanto, a gestão muito centrada em fortes garantias não é necessariamente premissa de sucesso para atuar em um mercado onde a atividade econômica fim é intermediar riquezas. Assim, nos parece que a síntese dessa abordagem é encontrar em bons pareceres de crédito edificado pelos profissionais que propõe os créditos, uma explícita menção de que nas atuais condições o proponente reúne condições socioeconômicas para gerar riqueza e honrar a dívida, independente da garantia existir ou não.
Garantia real e sua complexidade no médio e longo prazo: Percebemos em ótimas Singulares uma realidade que pode estar discretamente edificando um complexo problema já para o médio prazo. É o fato de que, ao optar por uma política de crédito mais conservadora do que a praticada em seu mercado e exigindo garantia reais na quase totalidade de seus créditos, a Singular se coloca diante de uma dificuldade em alocar seu crescente funding. Isso naturalmente gera decrescentes Sobras, já que sua fonte de renda passa a também repousar na gestão da aplicação de seu crescente excesso de liquidez, o qual gradualmente irá demandar um risco maior para poder gerar receita no apoio à reversão dos futuros baixos resultados anuais. Nesse cenário, vê-se que essas instituições mais conservadoras detêm uma pequena e pouco elástica carteira de clientes, não permitindo ganhos expressivos em serviços próprios ou de terceiros. Assim, na busca de maior segurança creditícia, essas ótimas Singulares se vêm diante de um processo de crédito cada vez mais dispendioso, lento, concentrado… gerando apenas um discreto volume e que é concedido a taxas reduzidas. Vale aqui ressaltar que esses clientes de crédito que podem ou querem dar garantias reais são facilmente localizados em nosso micromercado, são muitíssimo desejados e até, quem sabe, já parcialmente atendidos pelos concorrentes, o que gera muitas vezes, baixíssima fidelidade e literais leilões de taxas e prazos, em benefício exclusivo desse cliente.
Sem dúvida precisamos ser prudentes na concessão de crédito, mas se desejamos estar competitivos no mercado dentro de alguns anos temos que fomentar um crescente apetite ao risco, que seja capaz de alavancar nossos volumes, taxas e melhor atender a carteira crescente de clientes mais massificados, mas não popular. O avanço nessa saudável direção permite o crescimento sustentável da instituição em um público mais volumoso, eclético e rentável.
A nosso ver, e baseando-nos em algumas premissas como as acima colocadas, o mero fato de não termos elevadas provisões e/ou perdas, quando comparado às coirmãs e ao mercado, não deve ser um atestado cabal de uma gestão creditícia saudável ou focada na sustentabilidade da Singular. Esses temas serão debatidos em nossos eventos nacionais de Gestão Estratégica do Crédito, que neste ano acontecerá em Brasília – DF, nos dias 20 e 21 de julho.
Não somos especialistas em avaliar garantias: Vejo com preocupação garantias reais sendo constituídas, sendo que não temos especialistas para avaliá-las em nosso quadro funcional. Muitas vezes são imóveis, veículos, equipamentos específicos, etc., os quais só são passíveis de serem avaliados por quem convive com esse mercado. Ou seja, além de determinarmos com precisão seu preço potencial, devemos ter o mesmo nível de informação quanto a sua valorização, depreciação, obsolescência, perfis necessários de seguros e, principalmente, quanto ao preço possível de sua venda diante da necessidade de convertermos rapidamente a garantia em uma fonte para liquidação da dívida. E mesmo assim, esses temas são raramente vistos nos pareceres de crédito. Mesmo que tenhamos apoio de técnicos externos, pode ser que não tenhamos formalmente em nossos manuais e políticas de crédito o balizador a ser adotado para obtenção do valor pelo qual aceitaremos uma garantia real. Assim, esse valor pode ser “encontrado” por uma mera inferência, ou pelo aceite de argumentos verbais anteriores de terceiros ou do próprio proponente, além de outras livres formas de consultas. Isso potencializa que os valores das garantias reais possam estar sendo considerados acima do realmente praticado nesse desconhecido mercado, ou ainda, o que é pior, tenham sua liquidez questionável, o que nos fará vender essas garantias a preços que não cobrem a dívida.
E agora! A garantia real foi pega em pagamento: Precisamos ser rápidos nessas ações, pois além de garantir a reversão de nossa provisão ou perda, essa agilidade nos mantém focado no mercado para o qual nascemos para competir. Mas aí começa uma saga que precisamos reverter, pois já se vê algumas Singulares “administrando” um rol de imóveis, veículos e outros bens retomados muito acima do “desejado”. Isso favorece que alguns líderes se debrucem demasiadamente na gestão desse passivo e, naturalmente, se distanciem do seu verdadeiro desafio que é o de fazer competitiva sua Singular em seu mercado. Vemos, em alguns casos, líderes que passam a dominar mais o mercado de bens retomados do que aqueles afins a sua Singular. E isso os empurra para negociações muito duras com potenciais compradores desses bens, como se fossem especialistas nesse segmento. E assim, esquecem que seu foco é repor rapidamente a perda contábil, e não obter lucro ou um bom preço com a venda de qualquer bem dado em garantia. Se o bem for vendido a um preço aceitável e mesmo assim não cobrir a dívida, pelo menos já temos uma boa parte da perda retornada ao nosso balanço, nos restando uma parcela da dívida menor a ser cobrada em outras instâncias. Isso quando não se observa que o principal da dívida já foi coberto com folga pela venda da garantia, o que em assunto de crédito é um ótimo negócio. Por fim, não devemos esquecer que todas as nossas taxas de juros preveem perdas reais, e se essa totalidade for menor do que a originalmente precificada, não há motivos para alarmes. Fomos eficazes na gestão do risco.
Cuidado com o crescimento da dívida vencida: A dívida vencida cresce pelos juros, multa e mora sempre acima da valorização de qualquer bem dado em garantia, o que torna o montante devido, muitas vezes, não mais suportado pela garantia dita como eficaz, quando da liberação do crédito. Até, eventualmente, podem existir garantias que valorizem mais que o crescimento de uma dívida litigiosa, mas isso é raro e não pode ser motivo de entorpecer nossos executivos, que acabam por direcionar esforços para auferir retornos com esses negócios, e se afastam da competitividade requerida por nossa instituição financeira. Essas visões e atitudes desfocadas do mercado da Singular poderão também ser um dos motivos pelos quais no médio prazo ela venha a ser excluída desse agressivo jogo. Resumidamente, mais sucesso teremos no desafio de eternizar nossa Singular, quanto mais cedo nos desfizermos de forma aceitável da garantia, seja ela tomada, ou um bem ofertado pelo inadimplente ou mesmo um bem alcançado judicialmente. Por fim, devemos cuidar para não sermos uma extensão de uma imobiliária ou de uma revenda de carros usados. Mas, se o momento nos obrigar, que sejamos rápidos em sair desse cenário desconhecido.
Perda é parte natural de nosso negócio: Perder algo é natural em todos os mercados, e no nosso não seria diferente. O problema é se o custo da perda estimada foi corretamente previsto/orçado. Nesse caso não seria perda e, sim, apenas mais um item de custo que compõe o preço do crédito. Vejamos essa exposição de motivos quanto à perda em outros mercados. Um marceneiro fez para você um armário embutido. Sem dúvida no preço foi computado também todos os “retalhos” de madeira que teve que jogar fora fazendo os recortes do seu móvel. Um dono de um restaurante por quilo também orçou e precificou nesse valor tudo aquilo que, em média, terá de jogar fora mais tarde por não ter sido vendido. Assim sendo, a perda faz parte de nosso negócio e, caso percamos algo que é menor ou igual ao que foi previamente precificado na taxa, não há porquê considerar perda. É apenas mais um item de custo.
A importância da Garantia: É notória a importância das garantias nos processos creditícios, mas nos parece que devemos reaprender a ser mais eficazes fazendo uma releitura global do cenário e do que nos espera no futuro. Não devemos nos esquecer que, em relação aos balizadores de risco, há outras maneiras de avançarmos, seja utilizando outras formas de garantias, ou obtendo melhores informações para que possamos reduzir nossas exigências nas políticas creditícias, ou adotando majorações em nossos preços frente ao desconforto e desconhecimento quanto a um devedor, etc.. Assim, aos bons clientes, daríamos a opção de nos apresentar uma boa garantia com o propósito de redução de taxa, mas não alongaríamos o crédito, haja vista que o prazo é uma função direta da capacidade de pagamento e da manutenção de sua “empregabilidade”. Por fim, nos parece que manter uma política conservadora de garantia, muito acima do praticado em nosso mercado, pode ser no médio prazo algo mais temeroso comercialmente do que aprender a conviver com maiores perdas, quando essas são bem precificadas e tiveram origem em um processo creditício focado em um maior número de devedores, esses dependentes de várias fontes de renda e riquezas.
Temas complementares para melhor utilidade deste artigo:
1º) Singular – Socorro! A garantia sumiu: Esse é o título do artigo postado em nosso site há dois anos, no qual apresentamos alguns descompassos que podem ocorrem frente à integridade das garantias, e que eventualmente podem estar acontecendo em sua Singular. Fica aqui, então, a seguinte reflexão: Por que tamanha atenção com a garantia real se não garantimos sua integridade a nosso favor? Pondere. Sua Singular hoje tem todos os carros, equipamentos, imóveis, etc. financiados ou dados em garantia com suas apólices quitadas pelo devedor, e tendo sua Singular como a primeira beneficiária? Sabendo da possível resposta, fica a questão: por que tanto zelo por ter uma garantia real na liberação de um crédito, se não a mantemos viável no desafio de socorrer o crédito em caso de potencial perda? Ou, pior ainda, se nem sequer a visitamos regularmente aquelas mais expressivas?
2º) Perdas analisadas em um único percentual: Em recente artigo chamamos a atenção sobre o equívoco de gestão quando debruçamos nossa análise sobre as perdas de uma Singular com base em único número (ex.: 3%). Pois, ao não fazermos uma leitura técnica, não levamos em conta, por exemplo, se esses 3% são preferencialmente compostos por perdas de uma baratíssima carteira de Repasse onde a Singular foi a avalista direta e já pagou o agende financeiro. Nesse caso estamos diante de perdas bem descompassadas e perigosas. Por outro lado, se esses mesmos 3% forem preferencialmente composto de cheque especial ou por créditos pré-aprovados sem aval, muito provavelmente não há motivos de preocupação para nossos executivos, já que as taxas de juros destes produtos suportam perdas muito superiores a 3%.
Contudo, continuaremos a sugerir aos nossos controles internos, gestores de Centrais, auditores internos e independentes, e até ao órgão regulador que precisam rever a forma de acompanhar o índice de perda de uma Singular. Evitando assim, não mais incorrermos no equívoco de comparar de forma bruta os índices de perdas entre distintas Singulares.
Reflexões Finais: Ouçamos com muita atenção a Delação Premiada da Garantia Real. Ela irá delatar que, se desejamos estar nesse mercado daqui a alguns anos, devemos repensar a lógica tradicional e elementar da garantia real. Também irá delatar que precisamos identificar com precisão se nas precificações das nossas várias taxas de juros foi definida e monitorada a perda efetivamente esperada. E por fim, já afônica, irá delatar que não há motivo de preocupação dos nossos líderes se a perda de uma linha for menor que a precificada em sua taxa de juros.
Essa nossa ampliada e oxigenada abordagem quanto ao Risco de Crédito X Garantia Real poderia ser um dos pilares em nossos esforços à luz do verdadeiro mercado financeiro de varejo mais eclético, que, sem dúvida, será o nosso único futuro.
Concordar é secundário. Refletir é urgente
Ricardo Coelho – Consultoria e Treinamento Comercial para Instituições Financeiras
Material interessante para ser discutido e aprofundado, principalmente dentro dos conselhos de administração das Singulares e se possível com apoio e orientação das Centrais.
Excelente artigo, parabéns!