No dia 21 de outubro foi comemorado o Dia Internacional do Cooperativismo de Crédito, e a minha vida profissional está inexoravelmente ligada ao setor. É o que respiro todos os dias, há mais de 20 anos. E é por isso que o nascimento do cooperativismo de crédito no país me fascina em particular, porque de alguma forma me sinto fazendo parte de uma ideia engenhosa, um exemplo de criatividade de quem conseguiu fazer muito com pouco.
A primeira cooperativa de crédito da América Latina surgiu como uma solução incrivelmente criativa em um momento crucial da história da imigração no Sul do Brasil, no início do século 20. Talvez seria de se imaginar que uma proposta assim empreendedora nasceria no Sudeste, em uma São Paulo cafeeira e industrial, ou no Rio de Janeiro, então capital da República. Mas a lâmpada do cooperativismo de crédito foi acesa bem longe do eixo financeiro do país – aliás, essa distância ajuda a explicar a iniciativa.
Para compreender o impacto desta ideia, vamos fazer uma breve viagem no tempo. O ano é 1902 e estamos em Linha Imperial, uma localidade rural da colônia de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, habitada por colonos europeus, de maioria alemã. O solo é fértil e a vontade de trabalhar é grande, mas à parte isso as condições de vida não tinham ares de prosperidade. O acesso à educação e à saúde era precário, o governo brasileiro não dera o apoio prometido, não havia infraestrutura nem instituições financeiras por perto e a maior parte dos imigrantes chegou com poucos recursos para investir em terra e insumos no Novo Mundo.
É aqui que entra o grande personagem dessa história, o padre jesuíta Theodor Amstad. O sacerdote suíço vivia no Rio Grande do Sul desde 1885, quando chegou ao Brasil em missão, e antes de atravessar o Atlântico passou por países como Inglaterra, Alemanha e Holanda. Seu conhecimento sobre cooperativas na Europa foi a chave para o desenvolvimento de várias comunidades culturalmente isoladas até então.
O jesuíta usou seu poder de argumentação e convenceu os primeiros 19 associados a apostar em uma ideia ousada e completamente nova no Brasil, baseada no método alemão Raiffeisen de crédito rural. Nascia a Cooperativa Caixa de Economias e Empréstimos Amstad, que uniu o capital de alguns investidores à força do trabalho, e quem precisava de um impulso para começar a vida conseguiu um ponto de partida. Foi através das chamadas caixas rurais que alguns imigrantes puderam finalmente financiar a compra de terras.
O modelo não demorou para ser replicado em outras localidades de imigrantes – Amstad chegou a fundar pessoalmente 38 cooperativas, que no início tinham sede na própria casa dos gerentes ou nos salões paroquiais. A cultura da cooperativa de crédito rural no início do século 20 se disseminou em rede pelo interior do Rio Grande do Sul e alcançou até o Oeste Catarinense. Esta nova lógica financeira alteraria toda a estrutura das colônias. Parte do lucro das instituições era destinado a um fundo social que patrocinou a criação de escolas, asilos, hospitais e até a instalação de energia elétrica em regiões de Nova Petrópolis. Educação financeira existe para vivermos melhor, e esse pensamento não envelheceu um único dia desde 1902.
Incansável, o padre Amstad visitava pessoalmente todas as cooperativas no lombo de uma mula para orientar associados e revisar documentos, até que uma queda o deixou em uma cadeira de rodas em 1923. O acidente convocou mais uma vez esse elemento mágico chamado criatividade: criou-se então uma Central de Cooperativas, para manter o controle e a coesão das entidades. Qualquer semelhança com a organização atual das unidades cooperadas não é mera coincidência.
Aquela primeira semente chamada Caixa Amstad responde hoje por Sicredi Pioneira, que integra o Sistema Sicredi – nome de alcance nacional e que inspira enorme respeito no setor do cooperativismo de crédito do país, com nada menos do que 4,9 milhões de associados em 23 estados brasileiros. Nestes mais de 100 anos, a entidade mudou de nome, cresceu e sobreviveu a todas as oscilações na economia do país. Hoje há também muitos associados de perfil urbano, mas a Sicredi Pioneira mantém o laço forte com o campo e segue com a proposta de inclusão financeira no meio rural. A cidade de Nova Petrópolis recebeu o título de Capital Nacional do Cooperativismo e o padre Amstad, de patrono.
Essa história me emociona tanto que faço questão de contá-la no meu próximo livro, com lançamento em breve. A atuação de Amstad passou longe do assistencialismo e ousou tocar em um ponto que é tabu até hoje: o dinheiro. Provou que a qualidade da nossa vida material passa pelo bom uso dele e que todos podem ter acesso à prosperidade quando a mobilização é feita em grupo.
Marcelo Vieira Martins é CEO da Unicred União e autor de livros sobre cooperativismo.