E se em decorrência das inevitáveis mudanças que se apresentam diariamente perdêssemos parte de nossa essência e identidade? Que prejuízo seria este? O que isso implicaria?
Aceita um convite para usar a imaginação??? (se sim, siga em frente!).
Pois então, imagine esta cena:
Uma cooperativa está dirigindo um veículo e é abordada em uma blitz de trânsito.
O guarda, no procedimento padrão, pede: “documento do veículo e identificação pessoal”.
Como documento do veículo, a cooperativa apresenta ao guarda o seu endereço, estrutura de sua sede e filiais, maquinários, número de colaboradores e outros pertinentes à sua operação.
Já, como documento de identificação, o que será que a cooperativa iria apresentar?
E se trocarmos o ‘guarda’ pela ‘sociedade’, o que estamos apresentando como identidade cooperativa?
No que tange ao cooperativismo, há vozes que afirmam que ainda é um desconhecido para grande parte da sociedade.
Nesse viés, não me ocorre nada mais coerente do que apresentarmos ao que viemos, para que existimos, nossos valores, princípios, propósitos, centralidade, enfim, o conjunto que nos traduz e nos distingue, enquanto cooperativas.
Ou seja, podemos dizer que esse conjunto compõe a nossa identidade.
Mas e se o guarda e/ou a sociedade forem até a cooperativa será que irão ver na prática tudo o que foi dito sobre a identidade?
Expectativa e realidade se conectam perfeitamente em nosso cooperativismo contemporâneo?
Será que aquilo que estamos verbalizando estamos vivendo e materializando efetivamente?
Até que ponto diariamente exercitamos a cultura cooperativista e, portanto, fortalecemos e manifestamos nossa real identidade?
Em alguns eventos, exploro a figura de Teseu e seu navio. No famoso paradoxo, ao longo de um grande percurso de aventuras pelo mar, conforme as placas de madeira do navio de Teseu iam estragando, elas eram substituídas por outras placas de madeiras novas. Quando finalmente, depois de muito tempo, Teseu retornou a Atenas, todas as placas de madeira haviam sido trocadas. E neste ponto é que surge o questionamento: o navio de Teseu era aquele que partiu ou este que chegou ao porto?
E se alguém recolhesse as placas descartadas no mar e reconstruísse o navio com as placas antigas e chegasse ao porto e ficassem os dois navios lado a lado. Qual seria de fato o navio de Teseu? O que atracou com as placas de madeiras novas ou o que atracou com as placas de madeiras antigas?
Um dos cernes deste debate, se deposita no efeito natural e inevitável das mudanças em contraponto com a essencialidade das coisas. E é nesta essência que se encontra aquilo que nos distingue, que nos identifica. A nossa identidade.
No ambiente cooperativista a perseguição pelo crescimento e escalada de negócios é uma realidade, os vetores de pressão, como ameaças e oportunidades vão oferecendo o ritmo do compasso. Somos desafiados diuturnamente a trocar as placas do nosso navio, a placa da inovação, do ESG, do ambiente virtual e outras mais. Neste desafio constante de produzir resultados e dar perenidade ao negócio, é preciso recordar que deve necessariamente ser um negócio cooperativo.
Como pauta da mesa, vejo os números de crescimento das agências de CC (gráfico). Uma evolução histórica sem precedentes, que com base nos dados do BC, apresenta em média, 90 pontos novos a cada mês, algo tipo 4,5 novos pontos de atendimento inaugurados a cada dia útil do ano de 2022, que até o momento (e assim espero que continue), merece notória celebração. Mas que, novamente aos meus olhos, inspira cuidados quando se trata do desafio de manter a identidade cooperativa
Elaboração Giacoo – Fonte BCB
Talvez você discorde, mas entendo que os colaboradores são uma espécie de arautos multiplicadores da cultura e da identidade cooperativa. E no caso das CC preparar adequadamente tanta gente em tão pouco tempo se torna um grande e complexo desafio. Afinal, se estes colaboradores estiverem com a visão distorcida sobre o que é uma cooperativa, provavelmente, multiplicarão junto aos cooperados e sociedade uma cultura equivocada e distante da verdadeira identidade cooperativa.
E veja, cito as CC, mas entendo que serve para qualquer cooperativa que esteja em exponencial crescimento.
Eis aí uma grande ameaça! Deixar de ser uma incrível e poderosa organização coletiva com participação democrática, compromisso local e identidade única, para ser apenas mais uma empresa de mercado e correr o risco de vir a ser algo que soa como cooperativa, mas na realidade não é; ou seja, uma cooperativa etérea/verbal sem essência/identidade prática.
Pelo princípio da verificação, não basta dizer que somos uma cooperativa, se de fato, não atuarmos como uma, respeitando os princípios e valores cooperativistas. Há a fatídica necessidade de vivenciarmos e materializarmos os discursos proferidos, de tal sorte, que evidenciem claramente os impactos de ganhos, vantagens e prosperidade que temos potencial de entregar.
Nossa distinção de existência, nossa essencialidade, cultura e identidade nos conferem poderes únicos para a execução de nosso propósito e estes todos, conjugados de forma eficiente, deverão continuar nos projetando em nossa jornada, independente das ‘placas de madeira’ que estiverem ao nosso redor.
Assim, espero que a identidade cooperativa esteja viva e pulsante na pauta estratégica da liderança do setor e em cada ambiente cooperativo. Pois, tão relevante quanto manifestarmos nossa identidade é termos convicção sobre ela.
Afinal, mais que a qualquer outro, ela nos impulsiona e nos faz recordar o porquê acreditamos no que acreditamos e fazemos o que fazemos.
Mas como saber se a cooperativa está perdendo sua identidade? E se está, o que fazer?
Bem! Há muitas coisas a fazer, mas nestas horas, como sugestão, recordo de uma música chamada ‘A começar em mim’, que em um trecho diz: “…só é real transformação, se começar em mim”.
Silvio Giusti é consultor em cooperativismo – Proprietário da GIACOO-Giusti Assesoria & Consultoria Cooperativa. Consultor Sênior e Coordenador de Redes Projeto DGRV (Confederação Alemã de Cooperativas) – Palestrante – Articulista