“A arte de tributar consiste em depenar o ganso tirando o máximo de penas e levando o mínimo de bicadas”. Do Tesoureiro de Luís XIV, o Rei Sol
Sabemos que, em razão de sua natureza não lucrativa, as cooperativas de crédito submetem-se a regime diferenciado de tributação.
A ausência de lucro, a par da previsão legal (art. 3º da Lei Cooperativista), sustenta-se, por princípio, na circunstância de as atividades essenciais das cooperativas restringirem-se aos associados, ou de derivarem, imediatamente, do relacionamento com estes.
- No primeiro caso – relacionamento genuíno com o associado (cooperativa x associado) – estão as atividades clássicas de intermediação financeira, representadas pelas captações e empréstimos de recursos.
- No segundo – atividades derivadas –, incluem-se, por exemplo, as aplicações no mercado financeiro dos recursos captados dos associados e não destinados a empréstimos para os próprios cooperados (cooperativa x mercado).
Assim, o pagar menos pelos recursos captados dos associados ou o cobrar mais pelos empréstimos concedidos a eles não afetará senão os próprios donos (também “clientes” ou usuários das soluções), já que os excedentes, direta ou indiretamente, revertem em favor deles mesmos. Não há um terceiro nessa relação – acionista, por exemplo –, interessado no resultado. Por isso, não tem sentido falar em lucro nesse caso. Diferente é a situação de um banco convencional. Aqui temos um grupo de pessoas donas do capital e um grande contingente de clientes (usuários das soluções), que são terceiros ou estranhos aos donos. Aqueles – os acionistas -, focados no lucro, têm o máximo de interesse de que se pague menos aos investimentos dos clientes e se cobre mais destes ao tomarem empréstimos. São, portanto, propósitos antagônicos.
Ato Cooperativo
Por isso, no caso das cooperativas de crédito, o resultado das atividades realizadas diretamente com os associados, incluindo a prestação de serviços propriamente ditos (geradora de tarifas ou comissões) ou executadas por derivação desse relacionamento (caso das aplicações em bancos), não está sujeito à incidência tributária.
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Não se fala, aqui, em transferência de renda ou algo assim, e sim em rateio dos benefícios de atividades desempenhadas em comum, de forma coletiva ou, ainda, em caráter de mutualidade. Assim que, por absoluta ausência de fato gerador – o lucro, na hipótese –, deixa de incidir imposto de renda (IR) e contribuição social (CSSL) sobre as sobras.
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Pela mesma razão, considerando que tais excedentes tem origem interna (vêm do relacionamento direto ou indireto com o próprio associado), não classificáveis como “faturamento”, também deixa de incidir COFINS e PIS – Faturamento.
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De igual modo, pela impossibilidade de qualificação fiscal das receitas, as cooperativas não se sujeitam, em tais casos, ao pagamento de ISS.
Em se tratando de IR, CSLL, PIS e COFINS, já há legislação (federal) contemplando explicitamente a desobrigação tributária. Já no que se refere ao ISS, tributo de competência municipal, embora haja vários exemplos de leis locais reconhecendo a desobrigação, em grande parte o benefício ainda não é declarado formalmente. Na ausência de lei específica, há, de um lado, situações em que o poder público municipal reconhece como suficiente a Lei Cooperativista, entendendo que ela (art. 11), em combinação com a Constituição Federal (art. 146, III, “c”), assume a condição de lei complementar em matéria tributária, e, de outro, nas quais não reconhece a prerrogativa, casos em que vem autuando as cooperativas. Nesta última hipótese, a solução passa pelos tribunais, âmbito no qual, em sede de Superior Tribunal de Justiça e até mesmo no Supremo Tribunal Federal, o embate já se resolveu em favor das cooperativas.
Obviamente que nos relacionamentos tipicamente externos (prestação de serviços a não-associados, por exemplo), geradores de receitas pagas por terceiros, estas (as receitas), feitas as deduções ou compensações legais, submetem-se normalmente à tributação. Em tais hipóteses temos uma situação contábil-fiscal equivalente à de uma empresa convencional. Porém, segundo corrente doutrinária em processo de consolidação, da qual fazemos parte, ainda que tributadas/tributáveis há receitas que não necessariamente precisam ser destinadas ao Fates, podendo/devendo compor as sobras à disposição da assembleia geral.
Falamos daquelas em relação às quais consegue-se demonstrar perfeitamente que a remuneração, embora formalmente repassada por terceiros, está, na verdade, embutida no preço pago pelos cooperados, usuários dos serviços (exemplos: seguros; consórcios; de “del credere”/comissionamento decorrente de repasses de recursos oficiais e outros). O mesmo entendimento vale para os juros e dividendos pagos às cooperativas pelos bancos cooperativos, como remuneração das ações de titularidade das primeiras.
Nunca é demais lembrar que os rendimentos de aplicações financeiras dos associados na cooperativa sujeitam-se à incidência do IRRF. O tratamento é o mesmo de qualquer cliente bancário, pois, de um lado, a legislação tributária reconhece prerrogativas apenas para o resultado coletivo da atividade cooperativa (art. 111 da Lei Cooperativista), não contendo uma única referência quanto ao privilegiamento imediato da relação associado x cooperativa, e, de outro, a Constituição Federal (art. 150, II) proíbe tratamentos distintos para situações semelhantes (princípio da isonomia tributária). Se não fosse assim, todos os clientes de bancos iriam querer migrar os seus recursos para uma cooperativa de crédito, pois, de pronto, teriam um diferencial substantivo de remuneração, representado pela não tributação dos rendimentos na fonte. Aliás, vale o registro de que a cooperativa, como mera substituta tributária, a rigor nem mesmo tem a legitimidade para discutir a incidência ou não incidência do IRRF em tais casos. Se houver interesse em questionar a exação, a iniciativa deverá partir do próprio associado.
Finalmente, quanto aos juros pagos às quotas-partes de capital dos associados, hoje limitados à taxa Selic (em razão do engessamento provocado pela Lei Complementar 130), embora a prática seja a de reter IRRF à alíquota de 15%, há inúmeras demandas judiciais em que se discute a obrigatoriedade dessa retenção por parte das cooperativas. A dúvida está na (in)suficiência de lei que imponha às cooperativas a condição de substitutas tributárias. A matéria ainda não foi definitivamente resolvida, comportando, até aqui, manifestações (em 1º e 2º graus) contra a tributação (em sua grande maioria) e a favor da incidência (situações menos recorrentes). Os tribunais superiores ainda não tiveram oportunidade de se pronunciar a respeito.
Isso é o velho. E de novo, o que temos?
Bem, ao que se sabe, como movimento ainda isolado, a Receita Federal do Brasil (RFB) está pretendendo tributar, na FONTE, as sobras devolvidas aos associados (o resultado que fica internalizado na cooperativa, na forma de fundos e reservas, por exemplo, não é considerado tributável pelo Fisco). Setores da RFB entendem que a sobra destinada (entregue) ao associado implica ganho de capital, sujeita, assim, à incidência de imposto de renda por ocasião do seu pagamento (crédito em conta, conversão em novas quotas-partes de capital etc). Para colocar as cooperativas no compromisso, como substitutas tributárias – responsáveis pela retenção na fonte do imposto -, a autoridade fiscal, no caso concreto, socorreu-se da Lei 8.981/95, que disciplina a incidência do imposto de renda sobre aplicações financeiras de renda fixa.
- O tema é delicado e, tecnicamente, até sujeito a alguma controvérsia (falo, especialmente, em relação às sobras recebidas em razão do saldo médio dos depósitos à vista e a prazo mantidos na cooperativa…). Mas, hoje, a legislação não favorece a pretensão fiscal, exceto se ficar caracterizado o abuso de forma, que seria, por exemplo, atribuir uma remuneração contratual/inicial irrisória para os depósitos a prazo, com intuito de “completá-la” ao final do exercício com a devolução de sobras….
- Antes de explorar mais detidamente o marco regulatório em vigor, no entanto, é preciso fazer uma rápida ponderação sobre o “conteúdo” das sobras. Estas, com efeito, são geradas por:
- “spread” (diferença entre o custo da captação e aplicação do dinheiro), cujo ingresso é representado pelos juros dos empréstimos e pela margem na reaplicação em maior escala no mercado financeiro, e
- pela remuneração de serviços típicos prestados pela cooperativa.
- Assim, ao ratear as sobras, a cooperativa devolve aos associados parte dos juros pagos nos empréstimos; parte das tarifas/remunerações pagas pela prestação de serviços e parte do ganho adicional no mercado financeiro.
- Portanto, nos dois primeiros casos, a título de mero exemplo, ao devolver aos associados parte do que estes pagaram a mais durante o exercício (juros e tarifas), a cooperativa está apenas minimizando custos financeiros (reduzindo despesas). Aonde, então, residiria o ganho de capital nessas situações? Inexiste, obviamente! Dessa forma, ainda que existisse lei prevendo a incidência de imposto em razão de acréscimo/ganho de capital pelo pagamento de sobras, essas parcelas das sobras jamais seriam objeto de tributação.
E a legislação, o que diz a respeito?
É senso comum entre os operadores do cooperativismo de crédito, e até aqui também do próprio Fisco (posicionamento institucional), que, de conformidade com as leis que regem as atividades das cooperativas de crédito, as sobras não são tributáveis, pouco importando o destino dos excedentes. Prova disso, o Parecer Normativo 522, de 08-12-1970, publicado pela Coordenação do Sistema de Tributação – CST (da então Secretaria da Receita Federal), ao proclamar que:
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a) Não são considerados como rendimentos, importâncias devolvidas pelas cooperativas aos seus associados como retorno ou sobra, não sendo, portanto, tributáveis nas pessoas físicas dos associados beneficiados com a restituição.
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b) Quanto à prestação de informações às repartições da Secretaria da Receita Federal é dispensável a indicação dos nomes dos beneficiários com o retorno ou sobra, de vez que trata-se de rendimento não sujeito à imposto.
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1) As importâncias devolvidas pelas cooperativas aos seus associados como retorno ou sobra, não são consideradas como rendimentos e sim como ressarcimento de capital correspondente ao reajustamento de preços, anteriormente pagos ou recebidos destes (Lei nº 4.506/64, art. 31, § 1º, b; Decreto nº 58.400/66, art. 23, parágrafo único, “b”).
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2) Assim sendo, as quantias devolvidas aos associados na forma acima, não sofrem qualquer tributação nas pessoas físicas dos associados beneficiados com as restituições.
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3) Nos termos do art. 33 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964, não é necessário informar às repartições da Secretaria da Receita Federal o nome dos associados que receberam retorno ou sobra, já que não se trata de rendimento sujeito a imposto.
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No mesmo sentido a Decisão Administrativa N 117, de 16 de maio de 2000, publicada na p. 11 da Seção 1 do Diário Oficial da União de 11-01-2001:
ASSUNTO: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF
EMENTA: SOBRAS DE CAIXA
Não se constituem em rendimentos tributáveis as importâncias devolvidas pelas cooperativas aos seus associados como retomo ou sobras de caixa.
DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei n° 5.764/1971, art. 4°, VII; e Parecer Normativo CST n° 522/1970.
Autuação sem embasamento
No caso da autuação de que se tem notícia, a autoridade fiscal, ao impor o ônus da (não) retenção à cooperativa, referiu – unicamente – a Lei 8.981/95, que, no §4º, “c”, do art. 65, diz se sujeitarem ao recolhimento do imposto de renda na fonte os “…rendimentos auferidos pela entrega de recursos a pessoa jurídica, sob qualquer forma e a qualquer título…”. Essa lei, como já mencionado, é a que disciplina a retenção e o recolhimento do imposto de renda na fonte incidente sobre aplicações financeiras de renda fixa.
Ora, é sabido que as cooperativas de crédito – assim como as cooperativas dos demais ramos – submetem-se a regime tributário próprio, especial, retratado em modelo legal específico, que em nenhum momento faz referência à possibilidade de tributação das sobras como aventado na mencionada autuação. Não é dado à autoridade fiscal tomar de empréstimo uma legislação genérica, que trata de aplicações financeiras, para, de uma hora para a outra, exigir responsabilidade tributária das cooperativas de crédito.
Aliás, a lei em questão (8.981/95) não revogou qualquer trecho da legislação específica relativa ao setor cooperativo. Basta consultar o Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 3.000/99) para ver que não há uma única menção à suposta responsabilidade por substituição tributária das cooperativas nessa hipótese. Por sinal, o RIR não foi sequer lembrado no termo de verificação fiscal (caso concreto antes referido). Logo, continuam plenamente em vigor o Parecer CST e a Decisão Administrativa acima reproduzidos, que reconhecem a não incidência de tributos em relação às sobras. Quando muito, poder-se-ia, a título de mera argumentação, pretender que o associado declarasse as receitas – contrapondo-as às despesas de idêntica natureza – em sua prestação de contas anual com o Fisco. Mas as cooperativas (como pessoas jurídicas) não têm nada a ver com isso!
Aliás, a confirmação de que esse tema ainda tem de ser tratado em legislação própria, voltada exclusivamente para a tributação das cooperativas, é o fato de a matéria compor o projeto de lei ordinária 3.723/2008, iniciativa essa que, no seu princípio, reuniu, em trabalho conjunto, representantes das cooperativas – de cuja composição fizemos parte – e do governo (Receita Federal do Brasil). O projeto em questão, que precisa ser revisto substancialmente em vários aspectos (em razão de seu descolamento quanto aos encaminhamentos iniciais do grupo), nos seus artigos 10 e 11, §1º, prevê a tributação das sobras devolvidas aos associados, atribuindo às cooperativas o dever da retenção na fonte.
A prevalecer, no futuro, o entendimento de que as sobras efetivamente tenham de ser taxadas na fonte, há que se fazer um adequado planejamento tributário no âmbito das cooperativas. Esse planejamento passa, inicialmente, pela revisão do quanto das sobras deve ficar retido na sociedade (reservas e fundos), montante esse não tributável, e do quanto realmente é conveniente devolver aos associados, valor então sujeito à tributação. Num segundo momento, daquilo que se pretende devolver aos associados, é conveniente fazer a suficiente evidenciação contábil do que representa retorno de tarifas e juros pagos nos empréstimos (redução de despesas dos associados) e do que traduz rateio sobre depósitos à vista e a prazo (suposto “ganho de capital”). Com a segregação explícita, fica bem mais fácil o “diálogo” com o órgão arrecadador.
Em síntese, por ora, excetuando-se as hipóteses de abuso de forma (contratação de remuneração irreal para os depósitos a prazo, com intuito de complementá-la, sem tributação, com as sobras), falta respaldo legal para o Fisco exigir das cooperativas de crédito que retenham, na fonte, o imposto de renda sobre as sobras devolvidas aos associados. Assim, a iniciativa de autuar cooperativas com esse propósito, hoje, reveste-se de total arbitrariedade, provocando, por isso, no mínimo, muitas “bicadas” do lado de cá!
Ênio Meinen
Advogado cooperativista e autor de várias obras jurídicas e relacionadas à gestão de cooperativas de crédito
Já que o objetivo não é ter lucro e muito menos sobra, sendo cooperativa (crédito ou produção) o propósito é servir seus associados da melhor maneira possível e pelo menor custo, se há sobra talvez seu objetivo não esteja sendo alcançado e seu propósito desvirtuado.