Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. (Guimarães Rosa)
A designação cooperativa de “crédito”, que remonta ao início do Século passado (o primeiro ato legislativo sobre o setor no país – Decreto do Poder Legislativo nº 1.637, de 1907 – já falava em “cooperativas de crédito agrícola”), tem merecido recorrentes objeções entre os protagonistas mais atentos da “causa” no Brasil.
O motivo está relacionado com a dissintonia entre o segundo vocábulo da denominação (“crédito”) e o que a cooperativa já faz ou pode e deve fazer nos dias de hoje, inclusive com fundamento no festejado art. 2º da Lei Complementar 130, de 2009.
Não se desconhece que em tempos mais remotos, a razão de ser da cooperativa era facilitar e melhorar o acesso dos associados ao crédito, diante da inadequação das ofertas pelo sistema convencional (restritas, intempestivas, inoportunas e insuficientes), e porque os empréstimos disponíveis, pelo seu custo, representavam verdadeira agiotagem!
Atualmente, contudo, conforme demonstram as melhores práticas, o fornecimento de recursos financeiros ao quadro social deve ser encarado somente como uma das atividades prioritárias da cooperativa. Aliás, para emprestar dinheiro há que, antes, captar recursos, ainda que sob a forma de capital social, em montante equivalente, o que por si só já torna imprópria a denunciada terminologia.
Com efeito, além do exercício da função clássica da intermediação financeira (captar e emprestar dinheiro), a oferta de outros produtos e serviços, mediante remuneração justa, é condição inescapável para a cooperativa cumprir o seu verdadeiro papel – de ser a principal instituição financeira do seu associado – e manter-se no mercado de forma competitiva e sustentável. Essa expansão de portfólio assume relevância ainda maior num contexto de disseminada hostilidade contra os altos spreads e de forte concorrência entre as instituições do sistema financeiro.
E se a cooperativa não oferecer cartão, consórcio, seguros, previdência, cobrança, arrecadações, fundos de investimentos (captação diferenciada) etc, o cooperado irá procurar tais soluções nos bancos, desencadeando inúmeros efeitos adversos, como:
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o associado verá a cooperativa como apenas uma provedora de crédito, portanto com um papel secundário ou de menor importância;
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o relacionamento com o associado irá fragilizar-se, e com o tempo, diante de condições similares de concessão, o próprio crédito passará a ser fornecido pelo banco;
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a receita pela oferta desse conjunto de produtos e serviços, que poderia ficar na cooperativa e ao final do exercício reverter em benefício do associado (uma vez contemplada na fórmula de rateio das sobras), ficará no banco sem qualquer retorno para quem pagou (associado-cliente);
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o “spread” do crédito (“calibragem” da taxa de juros em comparação com o custo de captação) tenderá a elevar-se, pois continuará sendo a única fonte de receita para cobrir os custos administrativo-operacionais e também para compor as sobras necessárias à realimentação do patrimônio da cooperativa. Neste caso – taxas de juros muito altas -, a cooperativa estará estimulando a evasão do associado, “empurrando-o” (na busca do crédito e do restante das soluções) para instituição concorrente.
Em síntese, limitando seu escopo operacional, a cooperativa – não importa se de livre admissão, semiaberta ou segmentada – fica debilitada em diferentes aspectos, pouco competitiva e cada vez mais distante do seu associado.
Adicione-se, como mais um aspecto positivo da oferta ampla de produtos e serviços, o fato de as soluções complementares (ou de “meio”) não apresentarem praticamente qualquer risco financeiro para a cooperativa, não sendo, com isso, necessário “empatar” capital para essa finalidade – diferentemente do que ocorre com o crédito. Em outras palavras, na ponderação “custo x benefício”, este último sempre prevalecerá. O único “custo”, diga-se de passagem, é um pouco de boa vontade para apreender o novo e não ter vergonha (nem ausência total de “ânimo”…) de oferecê-lo aos cooperados.
A extensão dos benefícios para os associados neste caso, considerando a sua condição de donos do empreendimento, também pode ser medida pela comparação do desempenho entre dois grupos de bancos. De um lado, tem-se a referência isolada do Bradesco, que bem cedo percebeu a necessidade – e a oportunidade – de reposicionamento, incentivando as soluções complementares; de outro, estão os demais bancos, que vêm revendo sua estratégia mais lentamente. No caso do Bradesco, conforme resultado de 2012, a repercussão do crédito na “última linha do balanço” foi de 26%, ao passo que apenas seguros e cartões – cujas operações, lamentavelmente, envolvem um grande número de associados de cooperativas – já representam mais da metade do lucro do conglomerado. No conjunto dos demais bancos, o crédito ainda participou com 45% na formação do resultado. Diante da exposição menos relevante no crédito, sofrendo por consequência menor impacto com provisões de devedores inadimplentes, combinada com o arrojo na comercialização de outros produtos e serviços, o Bradesco foi o único entre os gigantes privados a apresentar razoável melhora em seu lucro na comparação com exercícios anteriores… Não é por outra razão que suas ações valorizaram 20% entre outubro e dezembro de 2012, conquistando a inédita recomendação de analistas do principal concorrente como uma das melhores opções de investimento no mercado acionário (veja em Exame, 23-01-13, p. 100/Notícias).
Traduzindo, as instituições financeiras – entre elas, as cooperativas – sintonizadas com os novos tempos são as mais apreciadas pelo mercado e por seus donos, pois evidenciam maior sustentabilidade. Vale lembrar: tanto os bancos como as cooperativas, na condição de agentes do sistema financeiro nacional, têm de propugnar pela solidez, eficiência, competitividade e inclusão. Do contrário, pouco contribuirão para dias melhores …
A comparação e a competição com os bancos, de resto, é inevitável para as cooperativas. E converter “clientes” ou pessoas não bancarizadas em “associados” requer que as soluções do lado de cá sejam pelo menos equivalentes em alternativas e em qualidade. Qualquer outra apreciação é fantasiosa – e falaciosa – e certamente não somará para ampliar a participação das cooperativas no seu mercado-fim.
Isso, no entanto, não quer dizer que o relacionamento cooperativa x associado deva ser igual à abordagem e ao tratamento banco x cliente. Praticando adequadamente seus princípios, valores e diferenciais societários, o cooperativismo gera uma série de benefícios que sequer são cogitados pela concorrência. Basta, a título de exemplo:
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invocar o compromisso com o desenvolvimento econômico e social dos associados e das comunidades (que eleva a relação cooperativa-associado-comunidade a um verdadeiro círculo virtuoso);
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a participação do associado na gestão da cooperativa (que, ao final, repercute na qualidade dos produtos e serviços);
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a ausência do lucro (capaz de estabelecer patamares bem inferiores na precificação das soluções);
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o retorno, direto ou indireto, das sobras ao final do exercício (que faz reduzir ainda mais os custos financeiros suportados pelo associado) e, finalmente, o padrão de atendimento ao associado, até mesmo pela sua condição de proprietário do negócio (que personaliza o relacionamento e torna bem mais simpático o vínculo).
Isso para citar apenas alguns dos predicativos do verdadeiro cooperativismo.
É claro que o associado (ou ainda “cliente”) precisa ser suficientemente informado a respeito (do todo), especialmente quando um negócio pontual envolvendo oferta de concorrente o deixa em dúvida diante da equivalência ou diferença adversa de precificação na cooperativa. Mas isso, em regra, por desconhecimento ou “economia” de vontade, infelizmente não tem acontecido. Em outra palavras, há que melhorar a argumentação, trabalhar mais, sair da zona de conforto … Do contrário, a influência fica bem mais difícil!
Diante destas circunstâncias, que por sinal constituem apenas alguns dos motivos a recomendarem uma prática cooperativa mais abrangente (com atenção ao associado por inteiro) e efetivamente inclusiva (evitando a dupla e iníqua militância), não há porque resistir. O momento, a propósito – diante do binômio necessidade e oportunidade -, é muito apropriado para “ampliar os horizontes”, e o exemplo deve partir dos dirigentes e executivos do movimento, que não só devem deixar de consumir produtos e serviços da concorrência como ser os primeiros a experimentar as soluções oferecidas por sua cooperativa. Afinal, como lograr a preferência dos demais associados, se como líderes não confiamos nas nossas organizações!?
Uma indagação de ordem formal que a esta altura se impõe é: por que, então, a Lei Complementar 130, os normativos do Conselho Monetário Nacional e os atos do Banco Central do Brasil mantêm o emprego do vocábulo “crédito”, fazendo com que as cooperativas o continuem adotando? Por uma única razão: o art. 192 da Constituição Federal, por desatenção do legislador (não alertado para isso, à época), foi redigido com essa terminologia.
O fato, contudo, de a Constituição ter preferido a qualificação “crédito” não impede a utilização de outra terminologia jurídica e operacionalmente equivalente, mais apropriada à evolução do setor, desde que acompanhada, conforme cada situação, do vocábulo “cooperativa(s)/cooperativo(s)/cooperativismo” (exigência explicita da Lei Cooperativista). Assim, quando se trata do movimento como um todo, o ideal é falar em “sistema financeiro cooperativo (SFC)” ou simplesmente “cooperativismo financeiro”; quando for o caso de um grupo de cooperativas integradas horizontal e verticalmente, a alusão pode ser “(sub)sistema financeiro cooperativo…. (acrescido do nome agrupamento associado)”; quando o reporte for a uma ou mais cooperativas, o ideal é tratá-las de “instituição(ões) financeira(s) cooperativa(s)…”, ou simplesmente “cooperativa(s) financeira(s)”.
Por sinal, recomenda-se (pelos menos àquelas entidades que não operem apenas com capital e empréstimo) que os estatutos das cooperativas sejam reformulados, passando a adotar oficialmente essa nova terminologia (ex.: “instituição financeira cooperativa de livre admissão…” ou apenas “cooperativa financeira de livre admissão…”).
De resto, há que se promover, através de campanhas pontuais e processo de comunicação regular, a ampla divulgação do empreendimento de acordo com a real dimensão das atividades da cooperativa, informando adequadamente o público interno, os associados e a comunidade em geral.
Enfim, voltando à pergunta que anuncia o título deste artigo, a cooperativa do ramo crédito, em fidelidade ao que já é, pode e deve ser a sua extensão operacional, definitivamente está mais para uma instituição financeira (de natureza) cooperativa!
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Ênio Meinen é advogado, pós-graduado em direito e em gestão estratégica de pessoas e autor de vários livros sobre cooperativismo de crédito – área na qual atua há 29 anos -, entre eles “O cooperativismo de crédito ontem, hoje e amanhã”. Atualmente, é diretor de operações do Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob).