Sobras Líquidas – Quando há exageros na polissemia, por Ricardo Coelho

sobras líquidasSe você fosse um estilista e lhe perguntassem se conhece manga, certamente você daria uma aula sobre os tipos, sua história e tendências. Se morasse no Nordeste, usaria a expressão manga para se referir a quem tenta caçoar ou criticar alguém. Já se vivesse mais ao Sul e no Centro-oeste, falaria que caiu uma manga de chuva para se referir a uma chuva rápida e torrencial. Se fosse agropecuarista, entenderia manga como uma fruta ou o local onde se aparta o gado, dependendo da aplicação de cada um desses conceitos. Poderíamos falar de inúmeros outros usos para a palavra manga, haja vista que a palavra “manga” é um rico exemplo de polissemia, que segundo a Linguística ocorre quando uma palavra apresenta vários sentidos diferentes.

Essa introdução nos faz ponderar se não poderíamos estar usando em nosso modelo de negócio a palavra “Sobras” para apontar outras distintas utilidades, as quais se distanciam do seu explícito conceito legal. Dessa forma, observa-se em alguns casos que, visando ajustar a um interesse pontual, amplia-se em demasia o conceito do que seja “Sobras”, fazendo com que ele se distancie do escopo desejado pelo legislador. Esse artigo propõe reflexões sobre um eventual uso da polissemia quanto a palavra “Sobras”. Vamos juntos criar bases para nossas ponderações.

1º) Sobras Líquidas: Carrega no seu bojo o correto conceito legal e contábil do que seja Sobra, sendo que na Lei 5764/71, a qual regulamenta o Cooperativismo, menciona que o valor das Sobras Líquidas apuradas só será assim reconhecido após deduzirmos do Resultado da Singular o volume aportado na Reserva Legal, no Fates e algum aporte a um fundo estatutariamente previsto, quando da apuração no final do ano fiscal anterior a AGO. Ao analisar detalhadamente essa regulamentação não encontramos nenhuma outra menção que nos permitisse um entendimento ampliado do conceito formal de Sobras.

Obs. 01: Devemos nos certificar que, caso a Singular remunere o Capital Social, essa despesa deve ser deduzida do Resultado da Singular, para que somente diante desse menor montante sejam aplicados os percentuais das destinações legais para a Reserva Legal, Fates e algum outro fundo formalmente constituído. A desatenção desta premissa legal gera uma destinação a Reserva, Fates ou a um fundo constituído, muito maior do que a legalmente definida na lei (ou estatuto), consequentemente reduzindo equivocadamente as Sobras à disposição da AGO.

Obs. 02: As Sobras Líquidas terão sempre o mesmo valor que será apresentado na AGO, quando essa analisará e aceitará (ou não) as propostas formuladas pelo Conselho de Administração quanto a sua destinação. Assim, de forma soberana, a AGO se posiciona e define o destino desse montante, podendo, inclusive, aprovar ou propor novos aportes na Reserva Legal, e/ou Fates, e/ou em algum outro fundo estatutário e/ou destinar parte ou o todo desse montante aos sócios em função de suas operações comerciais.

Obs. 03: Caso o Resultado da Singular seja pequeno e usado na totalidade para pagar os Juros ao Capital, não haverá aportes à Reserva Legal, Fates ou a algum outro fundo estatutário, e nesse caso, não haverá sobras nem perdas. Sobras/Perdas “zero”.

Obs. 04: Na LC 5764/71, o antônimo de Sobras Líquidas é Perdas o que obriga a Singular a proceder a esse complexo rateio negativo. Portanto frente a resultados negativos não há como usarmos tão facilmente um entendimento ampliado.

2º) “Sobra Ampliada”: É uma ampliação independente do conceito de “Sobras”, que pode ser “elaborado” de forma livre por cada Singular, visando seu uso comercial, sendo que ele não encontra guarida na legislação. Vê-se que a “Sobra Ampliada” usualmente soma a formal Sobra Líquida aqueles volumes destinados à Reserva, Fates e a algum fundo constituído, e também, caso haja, soma a remuneração do Capital Social. Esses montantes aqui citados são entendidos pela regulamentação como despesa normal do exercício anterior a AGO (salário, aluguel, remuneração de depósito a prazo, impostos etc). Assim, pela prática, equivocadamente se rotula o inflado montante da “Sobra Ampliada” como se fosse a Sobra Líquida.

Importante: O conceito de Sobras não é corriqueiro para a sociedade e é pouco assimilado pelos nossos sócios e por muitos de nossos funcionários e conselheiros. Assim sendo, há uma tendência de que a percepção dos sócios quanto as Sobras da sua Singular seja aquele montante apresentado com essa roupagem pelos líderes da sua Cooperativa de Crédito. Para confirmar essa nossa percepção, basta validar esse cenário em uma pesquisa junto aos envolvidos.

Esse conceito de “Sobra Ampliada” vem ganhando amplitude e notoriedade em função da necessidade de se obter maior destaque comercial e pujança pata a Singular, sua bandeira ou ao próprio Cooperativismo de Crédito. Isso impacta favoravelmente a visão dos sócios e da sociedade quanto ao nosso modelo de negócio. Mas isso, de forma um tanto quanto tendenciosa, sinaliza à sociedade e aos sócios que o nosso modelo de negócio é uma opção muito melhor do que a dos concorrentes. Isso, pois, sabemos que essa percepção “ampliada” da eficácia comercial da Singular não é formal ou conceitualmente substancial, potencializando uma confusão ou desinformação dos sócios, funcionários e sociedade. E dessa maneira podemos dizer que sim, somos uma solução melhor que os bancos, mas não há necessidade de ampliarmos nossos números para que pareçamos maiores do que realmente somos.

Comparativos falhos “lendo” Sobras: Se uma Singular divulga sua “Sobra Ampliada” e outra sua Sobra Líquida, é notório que não há como fazer comparações, ainda que as duas paguem o mesmo percentual da Selic na remuneração do Capital Social, e/ou façam o mesmo aporte em Reserva, Fates ou em algum fundo constituído. Também não é possível comparar duas Singulares, se uma delas remunerar o Capital Social menos que a outra, ou não o fazer. Assim, é importante observar se esses equívocos podem estar ocorrendo, pois eles resultam em incoerentes comparações, decisões e ações, além de pouca transparência frente aos sócios e à sociedade. Esses são alguns dos inúmeros percalços de não padronizarmos o conceito de “Sobras” como balizado pela legislação.

Mais transparência: Caso uma Singular mantenha o uso da expressão ampliada da palavra “Sobra”, que significa dizer que tem em sua composição valores não previstos na regulamentação formal, seria oportuno deixar explícito sua real composição em suas comunicações aos sócios, aos funcionários, conselheiros e à sociedade, para que assim esses interessados a interpretem como uma variação do Resultado Comercial e não como Sobras Líquidas.

Acreditamos que não é saudável ao processo de transparência a decisão de manter o uso ampliado da palavra “Sobras”, já que não coaduna com a normativa legal. Mas, caso optem por manter o uso da “Sobra” como se vê na expressão “Sobra Ampliada”, sugerimos que esta seja substituída pela expressão “Resultado Comercial”, seguida de uma palavra que possa dar clareza quanto a sua obtenção. Poupando, assim, o termo Sobras Líquidas, já que ele explicita o valor auferido pela Singular e que estará à disposição da AGO. É importante aqui ressaltar que as “Sobras Ampliadas” ou o Resultado Comercial configuram um volume muito maior do que as Sobras Líquidas, já que ainda estão infladas com as despesas já “pagas” de Reserva Legal, Fates e eventualmente juros ao Capital.

Devemos nos esforçar para que fique claro aos envolvidos que a Sobra Líquida é legalmente a única forma de mensurar o resultado societário da Singular, tanto que esse é o montante que estará à disposição da AGO para sua destinação soberana. E é nesse momento da destinação na AGO que nosso modelo de negócio se diferencia dos bancos comerciais.

Reflexão Final: É inconteste que, independente da Singular ter ou não Governança, ela precisa dar transparência as suas argumentações e comunicações formais a seus sócios e a sociedade, e para tanto, aconselhamos usar unicamente o conceito de Sobra Líquida internalizada pela legislação, a qual aponta o resultado da Singular já deduzido das “despesas” com a Reserva Legal, Fates, algum fundo estatutário, e de um eventual juro ao Capital.

Assim, qualquer outro montante maior que a Sobra Líquida seria rotulado de Resultado Comercial, seguido da expressão que informe sua real composição aos interessados. Em nosso modelo de negócio não nos parece saudável usar de facilidades da Linguística como a polissemia para ampliar o conceito do que seja Sobra.

Concordar é secundário. Refletir é urgente

12Ricardo Coelho Consultoria e Treinamento Comercial para o Cooperativismo de Crédito
www.ricardocoelhoconsult.com.br 41-3569-0466 – 99973-9495 Postado 10/03/2017

4 Comentários

  1. uma correção: onde esta escrito Lei 5764/74, lê se lei 5764/71

  2. No informe financeiro do ano calendário 2016 a cooperativa informa SOBRAS como Rendimento Tributário. No ano 2015 informou como Rendimento Isento e Não tributável.Isso está correto?

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