Quando falamos em desenvolvimento econômico, o cooperativismo de crédito está a frente dessa caminhada e já é considerado um movimento que ganha cada vez mais força no Brasil e no mundo. Além de apresentar um crescimento expressivo e significativo para a economia brasileira, hoje, o cooperativismo de crédito já é líder de mercado em algumas regiões do Brasil.
O Banco Central, no ano de 2019, consolidou um processo onde permitiu que as cooperativas tivessem acesso a todas as linhas de capitação de funding (recursos de investimento) do Sistema Financeiro Nacional, como, por exemplo, a poupança rural, letras financeiras e poupança e letra imobiliária.
Diretor de Fiscalização do Banco Central do Brasil, Paulo Sérgio Neves de Souza está no BC desde 1998, já tendo passado em diferentes funções, pelo Desup, pelo Departamento de Gestão Estratégica, Integração e Suporte da Fiscalização (Degef). Em entrevista exclusiva concedida à MundoCoop, Paulo Souza nos elucida sobre o papel do cooperativismo de crédito na economia, suas vantagens como modelo de negócio, os desafios em meio as transformações digitais e, ainda, comenta sobre o futuro do ramo em meio a um novo mundo.
Em 2020, o Banco Central tem o projeto de reformar o marco legal do cooperativismo e possui como objetivo principal propiciar às cooperativas de crédito que atuem de forma conjunta, ampliando a participação no mercado de crédito dos atuais 8%, para 20%.
MUNDOCOOP: Em sua opinião, como o cooperativismo pode contribuir com o desenvolvimento da economia?
As cooperativas de crédito contribuem para o desenvolvimento da economia de várias formas, inclusive ao prestar, aos seus associados, serviços financeiros como conta-corrente, aplicações financeiras, pagamentos, transferências, empréstimos e financiamentos, entre outros.
A cooperativa, diferentemente de outras instituições financeiras, é formada pela associação livre de pessoas naturais e empresas, em geral com interesses comuns, e, assim, tende a oferecer serviços mais personalizados aos associados.
Seu papel na educação financeira também é relevante, seja pela proximidade com o cooperado, seja pelo fato de que os associados podem (e devem) participar da gestão e da governança da cooperativa.
As cooperativas aumentam a capilaridade da rede de atendimento do sistema financeiro e facilitam a inclusão financeira. Elas costumam ter uma atuação muito voltada para determinadas regiões geográficas, reforçando assim a disponibilidade de serviços financeiros em locais em que entidades tradicionais podem não estar presentes.
Por essas razões e também pelo fato de as cooperativas não visarem lucro, o resultado positivo, também conhecido como sobra, é repartido entre os cooperados e, assim, os ganhos tendem a voltar para as comunidades de origem e as cooperativas podem oferecer produtos financeiros a preços mais competitivos. A organização das cooperativas em centrais e confederações lhes proporciona ganhos de escala e redução de custos, o que também amplia sua capacidade de ofertar uma gama variada de serviços a preços competitivos.
Por fim, mas não menos importante, o ciclo de expansão e retração do crédito no âmbito do cooperativismo, pelas características da sua captação, demanda e oferta (capta e empresta em um grupo delimitado), costuma ter um comportamento diferente do conjunto do restante da economia e, assim, o crédito cooperativo pode ter um papel anticíclico.
MUNDOCOOP: O que faz com que as cooperativas se mantenham em meio às oscilações e crises econômicas?
As operações realizadas pelas cooperativas de crédito são, em geral, mais simples, tanto no lado do passivo, na captação de depósitos à vista e a prazo, quanto no lado do ativo, na concessão de crédito.
Além disso, suas operações são restritas à sua área de atuação. A peculiaridade do modelo de negócio das cooperativas de crédito, em que o cliente e usuário dos serviços financeiros é, ao mesmo tempo, o dono do negócio faz com que haja um maior envolvimento e amplo conhecimento da instituição em relação à comunidade em que está inserida, permitindo o direcionamento do negócio e o aproveitamento de oportunidades, com ganhos para ambas, cooperativa e comunidade.
Outro ponto importante, é que a maior parte das cooperativas atua de maneira sistêmica, o que possibilita que elas sejam assistidas por suas centrais ou associadas em momentos de dificuldade.
Portanto, a maior resiliência das cooperativas perante às crises econômicas pode ser explicada não só pela natureza das operações por elas realizadas, como pelo modelo de atuação mais próximo delas com os cooperados em nível local e regional.
MUNDOCOOP: O que a inclusão do cooperativismo na agenda BC# representa para a economia do país? Quais as vantagens dessa inclusão para as cooperativas?
A Agenda BC# é uma agenda estratégica do BC. Composta pelas dimensões “competitividade”, “educação”, “inclusão” e “transparência”, ela pretende, com base no incentivo à inovação e na tecnologia, estimular a competição e destravar barreiras à concorrência no SFN.
Por seu lado, o cooperativismo, tendo em vista as características mencionadas anteriormente, possui um modelo de negócio estável, bastante relevante na difusão do acesso ao crédito. Ele possui imenso potencial para aumentar a competitividade no sistema financeiro brasileiro e promover uma maior educação e inclusão financeira da população.
Tendo isso em vista, o BC incluiu várias ações ligadas ao cooperativismo na Agenda BC#, com o objetivo de fomentar os negócios, de aprimorar a governança e de aperfeiçoar a organização sistêmica para aumento da eficiência das cooperativas de crédito. Em 2019, por exemplo, consolidamos um processo que foi o de permitir que as cooperativas de crédito tenham acesso a mais linhas de captação do SFN, inclusive, aumentando o seu campo de atuação. Concedemos acesso a poupança rural, depois a letras financeiras e, mais no final do ano, a poupança imobiliária e a letra imobiliária garantida.
MUNDOCOOP: O que é o Marco legal do cooperativismo? Por que a sua revisão é importante?
O cooperativismo é um movimento global secular, mas o marco legal das cooperativas de crédito no Brasil, a Lei Complementar nº 130, já está completando quase 11 anos – foi editada em abril de 2009.
Sob a vigência não só dessa lei mas de diversos normativos que a regulamentaram, as cooperativas de crédito se expandiram e alcançaram marcas expressivas em determinadas regiões e nas modalidades em que mais atuam, não obstante ainda apresentem uma participação tímida quando comparadas ao agregado do Sistema Financeiro Nacional (menos de 5% em qualquer indicador: crédito concedido, depósitos, ativo total).
A revisão desse marco legal é uma das ações constantes da Agenda BC# e o que se pretende é que o segmento possa avançar ainda mais e de forma mais célere.
Além disso, o dinamismo e a digitalização dos serviços financeiros proporcionados pela evolução tecnológica modificaram muito o panorama do sistema financeiro, o que impõe uma necessidade de modernização e adaptação do marco legal e regulatório do cooperativismo de crédito.
Nesse sentido, o BC promoveu um amplo debate com as entidades representativas do cooperativismo de crédito, do qual resultou o Projeto de Lei Complementar nº 27/2020, recentemente apresentado ao Congresso Nacional pela Frente Parlamentar do Cooperativismo. O Projeto de Lei propõe alterações na Lei Complementar nº 130, em linha com os objetivos mencionados na resposta à questão anterior.
MUNDOCOOP: De que maneira as transformações digitais contribuem e/ou desafiam instituições financeiras no Brasil?
A evolução tecnológica verificada nos últimos anos está proporcionando uma grande transformação digital do setor financeiro, nada obstante a tecnologia sempre ter tido um papel importante para o Sistema Financeiro Nacional e para o Sistema de Pagamentos Brasileiro.
Um dos grandes catalisadores dessas mudanças é a própria evolução dos hábitos das pessoas em uma sociedade cada vez mais digital, com reflexos na forma como são consumidos serviços e produtos financeiros. Com o objetivo de atender a essa nova forma de relacionamento, instituições financeiras vêm perseguindo uma operação cada vez mais centrada no cliente, desenvolvendo capacidades para proporcionar uma melhor experiência de consumo e reconhecendo a importância dos smartphones e dispositivos móveis no alcance dessa missão.
Outro direcionador importante é a própria evolução regulatória, que parte da premissa de que as inovações impulsionadas pela tecnologia proporcionarão maior competição e um sistema financeiro mais democrático. A consolidação de um arcabouço regulatório que viabilize acesso seguro às novas tecnologias possibilita a remoção de potenciais barreiras de entrada e facilita o surgimento de novos entrantes, proporcionando maior competição e dinamismo ao sistema financeiro.
Cabe destacar que os benefícios esperados não se limitam aos clientes, ou seja, se bem explorada, a tecnologia pode contribuir sensivelmente para a operação das instituições financeiras, muito além da simples redução de custos obtida pela automatização.
Por outro lado, a operação cada vez mais digital traz desafios que precisam ser devidamente endereçados. A maior dependência de canais digitais, por exemplo, amplia a exposição de uma instituição ao risco cibernético e à ação de grupos criminosos especializados. Desta forma, a estratégia digital deve ser acompanhada do estabelecimento de controles adequados para a mitigação dos riscos emergentes. Os novos modelos de negócio demandarão uma operação cada vez mais resiliente, requerendo das instituições capacidades para o enfrentamento de incidentes que possam vir a impactar a disponibilidade dos serviços oferecidos aos clientes. Além disso, especial atenção deverá ser direcionada para a proteção das informações e para a prevenção de fraudes eletrônicas.
O processo de transformação digital vem se consolidando como um caminho sem retorno, com potencial de trazer grandes benefícios para a sociedade. Caberá às instituições desenvolverem uma estratégia para os próximos anos que possibilite que essa evolução se dê de forma segura, mediante a aquisição de capacidades para adequada gestão desse novo perfil de riscos.
MUNDOCOOP: O governo tem se mostrado a favor do crescimento do cooperativismo de crédito no Brasil. Qual o impacto desse incentivo para os bancos tradicionais, cooperativas de crédito e população em geral?
Conforme referido anteriormente, o cooperativismo aumenta a competição no sistema financeiro – o que é benéfico para toda a economia -, aumenta a capilaridade e a oferta de bens e serviços financeiros, favorece a educação e a inclusão financeira, e ainda pode ter um papel anticíclico no crédito.
Essas características tornam o cooperativismo, que vive um ciclo de crescimento, um setor relevante para o conjunto da sociedade. O aumento saudável da competição, no médio e no longo prazos, também leva ao fortalecimento do sistema financeiro, uma vez que mais competição exigirá mais eficiência dos agentes de mercado, maior investimento em novas tecnologias e o desenvolvimento de novos produtos e serviços.
MUNDOCOOP: O que torna o cooperativismo um modelo de negócio vantajoso para o desenvolvimento do país, em especial sua economia?
As cooperativas de crédito são instituições financeiras centradas nas pessoas, em que o cooperado é ao mesmo tempo cliente e proprietário da instituição e, por isso, todos seus resultados são destinados a seus associados e à sociedade. Isso alavanca a sua sustentabilidade.
Ademais, o cooperativismo de crédito promove concorrência no sistema financeiro, o que contribui para a redução de taxas de juros, para a ampliação da oferta de crédito e para a eficiência do Sistema Financeiro Nacional como um todo.
Essas entidades têm ainda um papel relevante na promoção da cidadania financeira, na medida em que proporcionam o acesso de pessoas com baixa disponibilidade de atendimento pelo sistema tradicional a produtos e serviços financeiros.
Não podemos nos esquecer também da contribuição do cooperativismo de crédito para o desenvolvimento socioeconômico regional. Recentemente, foi realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) um estudo sobre o impacto do crédito cooperativo na economia brasileira (link). O estudo demonstra quantitativamente a contribuição positiva do cooperativismo de crédito para diversas variáveis relacionadas ao desenvolvimento econômico, como, por exemplo, renda, emprego, empreendedorismo e comércio exterior.
MUNDOCOOP: Hoje temos os bancos privados, startups, fintechs e várias outras instituições surgindo e ocupando o mercado financeiro. O que você diria para as cooperativas de crédito?
Como mencionado anteriormente, as cooperativas de crédito possuem características muito singulares, que as distinguem das demais instituições.
Todas essas novas organizações mencionadas chegam ao mercado para agregar mais valor aos serviços e produtos ofertados aos clientes do sistema financeiro. Inclusive, muitas vezes isso ocorre por meio de parcerias com instituições maiores e mais tradicionais. O papel do BC é promover um ambiente adequado para que os diferentes tipos de instituição possam atuar de maneira a contribuir para o melhor funcionamento do sistema financeiro como um todo. Afinal, como já dito, o incremento saudável da competição leva ao fortalecimento do sistema financeiro, com o aumento da eficiência dos agentes de mercado, do investimento em tecnologia e com o desenvolvimento de novos produtos e serviços, em benefício dos usuários.
O Banco Central, por meio da Agenda BC# Cooperativismo, está modernizando o marco legal do cooperativismo de crédito, oferecendo novos instrumentos para alavancar negócios e aprimorando a estrutura de governança e a estrutura sistêmica. Aos dirigentes e a todos os colaboradores do cooperativismo de crédito, gostaria de dizer que as oportunidades estão se abrindo, e vocês, que estão no dia-a-dia das cooperativas, tomarão as decisões de forma a melhor aproveitá-las. Certamente há muito a ser feito, mas confio que, como resultado do trabalho conjunto entre BC e segmento cooperativista, observaremos nos próximos anos avanços significativos e um crescimento substancial do setor.
Por Jady Mathias Peroni – Matéria publicada na Revista MundoCoop, edição 93