As recentes enchentes no Rio Grande do Sul não são meramente um desastre natural; elas desencadeiam um momento decisivo para o setor empresarial, uma verdadeira prova de fogo para a autenticidade dos valores que as empresas professam. Nestes tempos críticos, a reação das corporações não somente revela sua capacidade de resposta, mas também escrutina a coerência entre suas promessas públicas e suas ações reais.
À medida que as águas invadem, é a autenticidade dos valores corporativos que enfrenta o verdadeiro dilúvio. A reação das empresas não apenas revela sua prontidão para responder, mas coloca em xeque a sincronia entre o que pregam e o que praticam. Não basta à moderna expectativa dos stakeholders a solidariedade episódica. Investidores, consumidores, funcionários e a sociedade exigem mais: ações concretas que reflitam o ethos proclamado pelas empresas. O desafio não é só mitigar danos, mas integrar práticas sustentáveis e éticas ao core business, preparando as empresas não apenas para responder com eficácia, mas com empatia.
O artigo de 2021 do professor Leo E. Strine Jr, “Restoration: The Role Stakeholder Governance Must Play in Recreating a Fair and Sustainable American Economy”, chama a atenção para esta virada de mesa.
As crises são o espelho da legitimidade corporativa: as empresas estão realmente alinhadas com as demandas de um mercado global e consciente?
As enchentes são uma chance para as empresas demonstrarem que sustentabilidade não é só parte da retórica de relações públicas, mas um componente indissociável de sua estratégia e operação. É o momento para as empresas não apenas agirem em benefício próprio, mas avançarem numa governança que equilibre responsavelmente os interesses de todos os stakeholders. Agora, a sociedade observa. E julgará as empresas não só pelas águas que conseguem conter, mas pelas pontes que conseguem construir.
A mobilização de diversas empresas em resposta às enchentes no Rio Grande do Sul demonstra um compromisso notável com a recuperação da região e o bem-estar das comunidades afetadas. Companhias aéreas como Azul e Latam têm desempenhado papéis cruciais, com a Azul instalando postos de arrecadação em seus aeroportos e lojas, e a Latam ativando seu programa “Avião Solidário” para transportar doações sem custo. Da mesma forma, o Sicredi tem utilizado sua rede de cooperativas para facilitar a arrecadação de doações via PIX, destacando a flexibilidade e rapidez das cooperativas financeiras em responder a crises, além de doações significativas. No setor da saúde, a Cimed contribuiu com a doação de medicamentos e apoio financeiro, mostrando a importância do suporte contínuo às necessidades médicas das vítimas. Essas iniciativas são complementadas pela ação estratégica da Ambev, que adaptou suas linhas de produção para envasar água potável, evidenciando um esforço que transcende o apoio logístico e se alinha profundamente com seus valores corporativos de responsabilidade social.
Adicionalmente, a sinergia entre as ações governamentais e corporativas, como as medidas tributárias e fiscais implementadas pelo governo do Rio Grande do Sul, ilustra a importância de uma abordagem colaborativa. Essa cooperação não só acelera a recuperação econômica e social das áreas afetadas, mas também destaca a necessidade de políticas públicas que facilitem e incentivem a participação empresarial em esforços de recuperação e reconstrução.
A robustez da governança corporativa transcende as funções tradicionais de controle e decisão, destacando-se como um pilar fundamental para a capacidade de uma empresa responder eficazmente a crises. Governança eficaz significa mais do que simplesmente gerir recursos; implica na habilidade de mobilizá-los rapidamente, planejar com visão de futuro e implementar ações que não apenas resolvam problemas imediatos, mas que também promovam a recuperação e a resiliência das comunidades no longo prazo. As empresas que possuem sistemas de governança sólidos demonstram não apenas preparo e adaptabilidade diante de desafios inesperados, mas também um compromisso contínuo e genuíno com os valores e expectativas da sociedade.
Essa capacidade de governança vai de encontro à oportunidade de as empresas demonstrarem liderança visionária, especialmente em tempos de crise, como no caso das enchentes. Revisando e fortalecendo seus propósitos corporativos, as empresas têm a chance de liderar pelo exemplo, mostrando não apenas solidariedade, mas também um compromisso profundo com a reconstrução de um futuro mais justo e seguro. A forma como uma empresa responde a crises pode refletir profundamente sua adesão aos valores que declara, moldando sua trajetória e reputação de longo prazo. Ao assumirem a liderança durante períodos turbulentos, as corporações podem definir o padrão para outros seguir, reafirmando o seu papel não apenas como agentes econômicos, mas como verdadeiros pilares de estabilidade e progresso em suas comunidades.
As enchentes no Rio Grande do Sul servem como um lembrete potente das vulnerabilidades humanas e ambientais e representam um teste definitivo para a integridade corporativa. Este evento desafiador oferece às empresas a chance de reafirmar seus compromissos com práticas responsáveis e proativas, demonstrando que são mais do que meras entidades econômicas; são pilares fundamentais para o bem-estar global e agentes de mudança na promoção de um desenvolvimento sustentável e equitativo.
Ao explorar essas facetas, aprofundamos nossa compreensão sobre a transformação no papel das empresas no século XXI, destacando-as como agentes cruciais para enfrentar desafios globais através de ações que são essenciais não apenas para sua sobrevivência e sucesso, mas também para a saúde e a vitalidade das sociedades em que operam.
Andiara Petterle atua como conselheira de administração em diversas empresas no Brasil e América Latina, e é professora de Transformação Digital no IBGC. É doutoranda na Business School Lausanne e possui especializações da Stanford University e Berkeley Law.