Safra recorde e dívidas crescentes: o paradoxo do agro

Safra recorde e dívidas crescentes: o paradoxo do agro

Safra recorde e dívidas crescentes: o paradoxo do agro e os reflexos nas cooperativas de crédito

O Brasil vive, simultaneamente, dois fenômenos contrastantes no campo: de um lado, colheitas excepcionais e produtividade em alta; de outro, um crescimento expressivo no número de produtores rurais que recorrem à recuperação judicial para evitar a falência. Esse paradoxo desafia não apenas os agricultores, mas também todo o sistema financeiro rural — incluindo as cooperativas de crédito, que precisam equilibrar solidariedade e sustentabilidade.

Produção agrícola em alta, mas com desequilíbrios financeiros

Segundo dados da Conab, o Brasil deve colher 336,1 milhões de toneladas de grãos em 2025, um crescimento de 13% sobre a safra anterior. Em termos de valor bruto da produção agropecuária (VBP), a estimativa é que o país alcance cerca de R$ 969 bilhões.

Apesar desses números expressivos, o que se vê na prática é que muitos produtores rurais estão financeiramente fragilizados. Nos anos anteriores, durante o ciclo de preços elevados (2019–2022), houve uma intensa expansão do crédito privado, com aquisição de máquinas, ampliação de áreas plantadas e compra de insumos caros — tudo sustentado por uma expectativa de permanência da bonança.

Mas o cenário mudou. A cotação da soja, por exemplo, caiu de R$ 184,40/saca para cerca de R$ 128,32/saca. Ao mesmo tempo, o custo dos insumos agrícolas permaneceu elevado, influenciado pelo câmbio e pela taxa Selic, que está atualmente em 14,75%.

Cresce o número de produtores em recuperação judicial

Com a rentabilidade pressionada e dívidas acumuladas, muitos produtores optaram por recorrer à justiça para renegociar suas obrigações. Em 2024, segundo a Serasa Experian, foram 1.272 pedidos de recuperação judicial, um aumento de 58,4%. Entre pessoas físicas, o salto foi de 127 para 566 pedidos — alta de 345,7%.

No Banco do Brasil, a inadimplência no agronegócio subiu de 1,9% para 3,04% no 1º trimestre de 2025. O Rio Grande do Sul, em especial, vive um cenário crítico, com prejuízos sucessivos por estiagens e, mais recentemente, excesso de chuvas que destruíram lavouras inteiras.

Especialistas alertam para os riscos da judicialização excessiva

O uso indiscriminado da recuperação judicial é visto com cautela por instituições financeiras. O Banco do Brasil alerta para a “litigância predatória”, quando produtores recorrem à justiça mesmo tendo condições de negociar. Já o Itaú BBA aponta que, em estados como Mato Grosso, o número de pedidos já começa a cair, sinalizando aprendizado e cautela crescente entre os produtores.

O que significa litigância predatória?

Litigância predatória é a prática de usar indevidamente mecanismos jurídicos — como a recuperação judicial — como estratégia para postergar pagamentos, ganhar tempo e evitar cobranças legítimas, mesmo quando o devedor possui outros caminhos para negociação.

Em muitos casos, produtores são orientados por escritórios de advocacia a entrar com pedidos de recuperação judicial sem que tenham esgotado as alternativas extrajudiciais com os credores. Há até relatos de propostas em massa feitas por empresas de assessoria, sugerindo a produtores rurais que, com a recuperação, poderiam “congelar dívidas” e “blindar o patrimônio”.

Por que isso é um problema?

  • Desvirtua a finalidade da lei: a recuperação judicial foi criada para empresas em grave crise, como última tentativa de evitar a falência — não como artifício para evitar negociações legítimas.
  • Impacta o sistema de crédito como um todo: quando o risco jurídico aumenta, os bancos e cooperativas tendem a restringir crédito, subir juros e exigir mais garantias — o que penaliza também os produtores sérios e adimplentes.
  • Gera insegurança para as instituições financeiras: com o avanço da litigância predatória, cresce o risco de calotes estratégicos, mesmo entre produtores que teriam condições de honrar seus compromissos de forma negociada.

O papel das cooperativas de crédito diante desse cenário

As cooperativas de crédito se destacam pela proximidade com o cooperado e pela flexibilidade na negociação. No entanto, elas também enfrentam os reflexos da crise, especialmente em regiões atingidas por eventos climáticos extremos.

Em muitos casos, é necessário reforçar provisões para perdas, o que pode impactar nas sobras distribuídas aos cooperados. Ainda assim, o modelo cooperativo se mostra resiliente e focado na sustentabilidade da relação de longo prazo com seus associados.

Créditos com cooperativas não entram na recuperação judicial

Uma decisão histórica da 3ª Turma do STJ, em maio de 2025, trouxe segurança jurídica ao cooperativismo: os créditos firmados entre cooperado e cooperativa não se submetem à recuperação judicial. Essa proteção decorre do fato de que tais operações são atos cooperativos, conforme a Lei 5.764/71 e o §13 do artigo 6º da Lei 11.101/05.

“A cooperativa pode executar seus créditos independentemente do processo de recuperação judicial do cooperado.”

Isso significa que:

  • As dívidas com a cooperativa não entram no plano de recuperação;
  • A cobrança pode continuar normalmente, com respaldo legal;
  • Preserva-se a solidez do sistema cooperativo e a mutualidade dos recursos.

Reflexos práticos no cooperativismo financeiro

Ainda que juridicamente protegidas, as cooperativas de crédito sentem efeitos indiretos da crise no agro:

  • Maior cautela na concessão de crédito;
  • Redução das sobras devido a maiores provisões contábeis;
  • Pressão sobre resultados em áreas mais afetadas, como o Centro-Oeste e o Sul do país.
  • Impacto sistêmico que as recuperações judiciais geram na indústria, comércio e serviços, gerando inadimplemento em operações de crédito de associados que são credores em recuperações judiciais.

O agro brasileiro está em plena transformação. Enquanto a produtividade atinge patamares históricos, os riscos financeiros exigem gestão estratégica, educação financeira e disciplina no uso do crédito.

Para as cooperativas de crédito, o momento é de união, resiliência e firmeza na missão de apoiar seus associados — sem comprometer a saúde institucional. A decisão do STJ fortalece essa posição e garante a sustentabilidade do modelo cooperativo.

Mais do que nunca, é hora de cooperar com responsabilidade, visão de longo prazo e compromisso com o desenvolvimento sustentável do campo brasileiro.


Elaborado pelo Portal do Cooperativismo Financeiro, com fontes do Estadão, Serasa Experian, Banco Central e STJ.

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