Pioneiros de Rochdale

A História do Cooperativismo na Inglaterra

O cooperativismo na Inglaterra emergiu em meio às turbulências da Revolução Industrial, como resposta às crises sociais e econômicas enfrentadas pelos trabalhadores. Ao longo do século XIX, o movimento evoluiu de experimentações utópicas mal-sucedidas a um modelo consolidado, com princípios próprios (os famosos Princípios de Rochdale) e instituições nacionais (como a Co-operative Wholesale Society). A seguir, apresentamos os principais períodos históricos dessa trajetória, em ordem cronológica, com seus marcos e características:

PeríodoDatas (aprox.)Principais Características
Revolução Industrial e Precursoresfins séc. XVIII – 1820Quebra da “economia moral” tradicional: motins contra a fome e alta de preços; surgem associações populares de compra de alimentos (protocooperativas) para enfrentar abusos.
Primeira Onda Cooperativa1820 – c.1835Ideais utópicos e primeiras cooperativas: experiências de comunidades cooperativas inspiradas por Robert Owen; criação de lojas cooperativas de consumo impulsionadas por William King; cerca de 300 sociedades fundadas; realização dos primeiros congressos cooperativos nacionais; muitos empreendimentos não prosperam por dificuldades diversas.
Declínio e Hiatoc.1835 – 1844Fracasso das iniciativas pioneiras: múltiplas cooperativas fecham; crises econômicas (ex.: 1837) e falta de respaldo legal desestruturam o movimento; operários desiludidos aguardam novo caminho – período de relativa estagnação cooperativa até meados da década de 1840.
Renascimento em Rochdale1844Fundação dos Pioneiros de Rochdale: um grupo de 28 tecelões funda uma cooperativa de consumo bem-sucedida em 21/dez/1844; formulação dos Princípios de Rochdale (gestão democrática, adesão aberta, retorno de excedentes, educação, etc.), que se tornam a base do cooperativismo moderno.
Expansão e Estruturação1845 – 1860sRápido crescimento pós-Rochdale: dezenas e depois centenas de cooperativas de consumo espalham-se pelo país (sobretudo em regiões operárias do norte da Inglaterra); diversificação para novos ramos (produção, crédito); criação da Co-operative Wholesale Society (CWS) em 1863 para integrar compras e suprimentos; arcabouço legal específico estabelecido (Leis de 1852 e 1862 reconhecem e protegem as sociedades cooperativas).
Consolidação e Legado1870s – 1900Movimento cooperativo consolidado: centenas de milhares de membros e papel importante no varejo britânico; fundação da Co-operative Union (1869) para educação e representação; adoção internacional do modelo Rochdale (o movimento inglês inspira cooperativas na Europa e em outros continentes); o cooperativismo demonstra viabilidade econômica e impacto social duradouro, tornando-se parte integrante da sociedade.

Revolução Industrial e Precursores (fins do séc. XVIII – início do XIX)

O contexto do final do século XVIII na Inglaterra foi marcado pela Revolução Industrial – industrialização acelerada, migração em massa do campo para as cidades e desagregação de antigas formas de sustento. Esse processo desestabilizou a “economia moral” tradicional, ou seja, os costumes comunitários que antes moderavam a relação entre elites e pobres. Por exemplo, esperava-se costumeiramente que os preços dos alimentos básicos permanecessem justos em épocas de escassez; porém, com mercados livres e busca de lucro acima de tudo, esses acordos implícitos ruíram. Comerciantes e patrões passaram a elevar os preços indiscriminadamente, mesmo que a população estivesse à beira da fome, rompendo as redes de proteção informal que amparavam os trabalhadores pobres.

A consequência foi um sentimento generalizado de traição e abandono entre as classes trabalhadoras. Em diversas localidades, explodiram os chamados “motins por comida” – revoltas populares contra o alto custo do pão e de outros gêneros essenciais. No final do século XVIII e início do XIX, esses tumultos por alimentos tornaram-se frequentes, refletindo o desespero diante da fome e da injustiça percebida na nova ordem econômica. Em suma, os trabalhadores pobres viam-se subitamente à mercê das leis de mercado, sem qualquer salvaguarda social: o pão nosso de cada dia passava a depender do poder de compra, não mais de normas morais comunitárias.

Diante dessa crise de carestia, emergiram as primeiras iniciativas populares de solidariedade econômica. Nos anos finais do século XVIII e primórdios do XIX, grupos comunitários de diversas regiões fundaram associações de compra coletiva de alimentos, especialmente de farinha e pão. Cada grupo reunia dinheiro para comprar trigo, farinha ou pão em grande quantidade diretamente de moinhos ou produtores, e depois revendia aos associados a preços mais acessíveis. Essas sociedades de consumo solidárias – embriões das futuras cooperativas de consumo – proliferaram justamente onde ocorriam os motins da fome. Pesquisas históricas indicam que, entre 1790 e 1810, 38 de 46 associações de compra de pão documentadas surgiram em áreas que haviam passado por protestos contra o preço dos alimentos.

Um exemplo marcante foi a Sociedade Antimoinhos de Hull, criada em 1795. Em Hull (cidade portuária no leste da Inglaterra), os moleiros locais cobravam fortunas pela farinha durante uma escassez; em resposta, moradores formaram sua própria sociedade para quebrar esse monopólio abusivo. A iniciativa deu certo – a sociedade manteve-se ativa por quase um século (sabe-se que ainda existia nos anos 1890). De modo geral, essas proto-cooperativas de abastecimento mostraram resiliência: em média, cada uma durou cerca de 48 anos, um tempo bastante longo, indicando que estavam suprindo necessidades reais e contavam com apoio contínuo das comunidades.

Vários fatores concretos explicam o aparecimento dessas associações de auto-abastecimento:

  • Em cidades industriais em rápido crescimento, a oferta de alimentos não acompanhava a demanda, permitindo que comerciantes cobrassem preços extorsivos por itens básicos. Famílias operárias gastavam quase tudo em comida e, ainda assim, passavam fome – daí a urgência de encontrar fontes mais baratas.
  • Em muitos vilarejos industriais, vigorava o “truck system”: os patrões pagavam os trabalhadores parcialmente em vales (ou mercadorias) válidos apenas nos armazéns da própria empresa. Isso obrigava os empregados a comprarem nessas lojas a preços inflacionados, muitas vezes a crédito, caindo em permanente endividamento. Embora uma lei de 1831 tecnicamente proibisse essa prática, ela continuou comum em regiões isoladas, amarrando os trabalhadores a dívidas e preços injustos nos armazéns dos empregadores.
  • Outro flagelo daquele período era a adulteração de alimentos. Sem regulamentação sanitária eficaz, produtos básicos eram frequentemente falsificados para aumentar o lucro: leite misturado com água, pão “branqueado” com alúmen (produto químico tóxico), folhas de chá reutilizadas e tingidas, entre outros exemplos. As principais vítimas dessas fraudes eram os pobres, que tinham pouco acesso a produtos de qualidade e não podiam se defender desse engano generalizado. Em certo relatório da época, constatou-se que virtualmente “todo artigo capaz de ser adulterado, o era”. Essa situação extrema significava que comprar no mercado comum trazia riscos sérios – tanto ao bolso quanto à saúde dos trabalhadores.

Diante dessas condições adversas, unir-se para comprar diretamente de fontes confiáveis tornou-se questão de sobrevivência. As primeiras associações de consumo de farinha e pão buscaram contornar os mercadores exploradores e garantir preço justo e pureza dos alimentos. Vale notar que essas iniciativas, embora rudimentares, eram legais e autônomas: baseavam-se na confiança mútua dos membros e em acordos informais, sem apoio externo. Eram, portanto, expressões de autoajuda da classe trabalhadora, que emergiram espontaneamente em resposta à falha do mercado em prover itens básicos a preços acessíveis.

Além da necessidade imediata, fatores culturais e sociais facilitaram o florescimento dessas proto-cooperativas. Com a industrialização, muitos ofícios tradicionais passaram a concentrar trabalhadores nas mesmas fábricas ou minas, fomentando laços de camaradagem. Colegas de trabalho com forte identidade de grupo – fossem eles mineiros, tecelões, metalúrgicos ou ferroviários – mostraram-se propensos a criar fundos coletivos para compra de suprimentos. Relatos indicam que, na primeira metade do século XIX, operários de estaleiros navais (como em Chatham e Portsmouth) se organizaram para comprar comida em conjunto; tecelões manuais desempregados também se juntaram em clubes de provisões; mineiros em certas regiões fizeram o mesmo. Esses grupos já compartilhavam confiança mútua e espírito de solidariedade (muitas vezes participando de sindicatos, greves ou sociedades de socorro mútuo), então adicionar um componente econômico coletivo foi um passo natural.

Simultaneamente, o deslocamento maciço do campo para a cidade criara nas pessoas um sentimento de perda de comunidade. Trabalhadores que deixavam suas aldeias natais se viam isolados nos centros urbanos industriais, buscando reconstruir laços sociais e apoio mútuo. Daí o florescimento, na classe operária urbana, de clubes, associações e irmandades – desde igrejas não conformistas e clubes de leitura até as incipientes cooperativas de consumo. Todas essas sociabilidades ofereciam aos indivíduos um senso de pertencimento e objetivos comuns. Em resumo, já no início do século XIX havia uma conjunção de pressão econômica (fome, exploração comercial) e coesão social (amizades de ofício, cultura de ajuda mútua) que formou o berço do cooperativismo.

Primeira Onda Cooperativa (1820–1830s)

A partir da década de 1820, as ideias de cooperação ganharam novo impulso e organização. Líderes reformistas e utópicos começaram a propor planos mais elaborados de organização cooperativa – não apenas para comprar alimentos, mas para refazer todo o sistema econômico em bases solidárias. Ao mesmo tempo, trabalhadores inspirados por essas ideias começaram a fundar sociedades cooperativas de vários tipos. Esse período de aproximadamente 1820 a 1835 é considerado a primeira onda do movimento cooperativo no Reino Unido. Foi uma fase experimental e efervescente, marcada por tentativas ambiciosas, porém em sua maioria malsucedidas no longo prazo.

Dois caminhos principais foram explorados nesse primeiro surto cooperativista:

Robert Owen

Comunidades cooperativas utópicas: Inspiradas principalmente pelo galês Robert Owen (1771–1858), um industrial iluminado e reformador social considerado o “pai do cooperativismo”. Owen administrava a fábrica têxtil de New Lanark, na Escócia, onde implementou um modelo pioneiro de bem-estar para seus empregados: reduziu jornadas de trabalho, melhorou moradias, criou escolas infantis e vendeu produtos a preço de custo em uma loja comunitária. Suas reformas em New Lanark (iniciadas por volta de 1800) ganharam fama internacional como exemplo de que era possível conciliar indústria com justiça social.

Embalado por esse sucesso local, Owen desenvolveu a visão de transformar a sociedade através de comunidades cooperativas amplas. Imaginou “aldeias de cooperação” onde algumas centenas de famílias trabalhariam juntas em fazendas e oficinas, viveriam em comunidade, repartiriam frutos do trabalho e reinvestiriam no bem comum – substituindo gradualmente o capitalismo competitivo por um sistema cooperativo universal. Nos anos 1820, Owen e seus discípulos tentaram pôr em prática esse sonho: várias colônias cooperativas foram fundadas, inspiradas por suas ideias, tanto em solo britânico quanto no exterior.

Entre as experiências mais notáveis estiveram a comunidade de Orbiston (perto de Glasgow, Escócia), iniciada em 1825, e a de New Harmony (Indiana, Estados Unidos), fundada pelo próprio Owen em 1826. Nessas colônias, homens, mulheres e crianças deveriam trabalhar coletivamente e repartir igualmente o resultado, vivendo em harmonia sem patrões nem propriedade privada significativa. Infelizmente, praticamente todas essas tentativas utópicas fracassaram em poucos anos. Dificuldades de gestão, falta de experiência agrícola, insuficiência de capital e disputas internas minaram as colônias. Orbiston se dissolveu até 1828; New Harmony também não se sustentou por muito tempo (Owen perdeu boa parte de sua fortuna nesse empreendimento). Em torno de 1830, as colônias cooperativas de Owen já eram coisa do passado.

Apesar do insucesso prático, o legado de Owen foi enorme. Ele popularizou o ideal cooperativo como nenhum outro indivíduo de sua época. Viajou, fez palestras, publicou jornais (como o periódico The Crisis) e articulou a causa cooperativista com o nascente movimento trabalhista e socialista. Em 1834, Owen esteve à frente da criação de um ambicioso sindicato nacional – a Grand National Consolidated Trades Union – que, embora efêmero, mostrou seu prestígio entre os operários. Owen defendia que era possível superar a miséria e a exploração sem violência revolucionária, mas sim “por meio de uma evolução pacífica das instituições econômicas”. Essa mensagem otimista, aliada ao carisma de Owen, manteve viva a chama cooperativista na imaginação popular, mesmo quando projetos concretos falhavam. Muitos trabalhadores que ouviram Owen pregar saíram inspirados a tentar cooperativas menores e mais práticas, se as grandes utopias rurais pareciam distantes.

William King

Sociedades cooperativas de consumo e produção (urbanas): Em paralelo às comunidades idealizadas por Owen, houve esforços mais modestos e pragmáticos durante essa primeira onda – notadamente influenciados pelo médico e filantropo Dr. William King (1786–1865). Atuando na cidade de Brighton (sul da Inglaterra), King tinha contato diário com operários pobres e percebeu que unir-se para comprar mantimentos podia aliviar de imediato suas penúrias. Admirador de Owen, mas menos utópico, King acreditava que “pequenas cooperativas de consumo” eram o ponto de partida para algo maior.

Em 1828, William King começou a publicar um jornal mensal chamado The Co-operator, inteiramente dedicado a difundir a prática cooperativa. Nesse periódico, King oferecia dicas práticas para grupos de trabalhadores montarem suas sociedades: como juntar capital, eleger tesoureiros, negociar bons preços, manter registros contábeis, etc. Ele encorajava a abertura de lojas cooperativas – pequenos armazéns onde os próprios associados venderiam a eles mesmos produtos de boa qualidade, sem intermediários, devolvendo os lucros para o caixa da associação. King via essas lojas como “escolas” para algo maior: uma vez capitalizadas e experientes, poderiam financiar colônias agrícolas no estilo de Owen, realizando o ideal gradualmente.

As ideias de William King rapidamente encontraram eco. Nos anos de 1828 a 1830, dezenas de sociedades cooperativas locais foram fundadas pelo país, muitas seguindo literalmente as instruções do jornal The Co-operator. Por exemplo, surgiram cooperativas de consumo em cidades como Brighton (estabelecida com apoio direto de King), Londres, Birmingham, e em pequenos povoados industriais. Algumas associações de ofício (de tipógrafos, sapateiros, alfaiates, etc.) também se converteram em cooperativas de produção, influenciadas pela propaganda de King e Owen. O jornal de King alcançou leitores fiéis, mas teve vida curta (encerrou-se em 1830). Ainda assim, seu impacto perdurou: vinte anos depois, cooperadores de Manchester batizaram seu próprio jornal como The Co-operator em homenagem a King.

Comparado a Owen, William King era religioso, moderado e didático, o que o tornou simpático a um público mais amplo. Sob seu incentivo, as cooperativas iniciais focaram no consumo (mais simples de implementar, exigindo capital menor) e adotaram princípios práticos: vender a preço de custo mais uma pequena margem, reinvestir os ganhos no negócio e manter independência de partidos ou igrejas para incluir todos os trabalhadores. King ajudou a aproximar o ideal cooperativo da realidade das famílias operárias, mostrando que com solidariedade e organização até os pobres podiam virar “comerciantes de si próprios”.

Com Owen insuflando a imaginação e King guiando a prática, o início dos anos 1830 viu um surto do movimento cooperativo. Estima-se que por volta de 1830 havia cerca de 300 cooperativas (de consumo e algumas de produção) fundadas no Reino Unido – um número notável para a época. Muitas eram bem pequenas, mas outras já reuniam centenas de membros. Nesse período ocorreram os primeiros Congressos Cooperativos Nacionais, reunindo delegados de diversas sociedades (há registros de encontros em 1831, 1832, 1833 e 1835). Nesses congressos, cooperadores trocavam experiências e tentavam coordenar esforços. Uma ideia comum discutida era criar um entreposto cooperativo central para suprir as lojas locais – embrião conceitual da futura CWS.

Entretanto, a maior parte dessas iniciativas pioneiras não perdurou. Após o auge inicial, o movimento cooperativo entrou em declínio a partir de meados da década de 1830. Por volta de 1834–1835, muitas lojas cooperativas fecharam as portas e as colônias utópicas já haviam fracassado. O entusiasmo arrefeceu: os congressos nacionais deixaram de acontecer após 1835 e o termo “cooperativa” quase desapareceu do noticiário por alguns anos. O primeiro momento cooperativo parecia ter sido um fogo de palha.

As razões do fracasso inicial (obstáculos na década de 1830)

É importante analisar por que essa primeira onda cooperativa não se sustentou – pois as lições seriam úteis à segunda onda, anos depois. Vários fatores contribuíram:

  • Crises econômicas cíclicas: A economia da época era instável, com pânicos financeiros e recessões recorrentes (houve forte crise em 1825 e outra em 1837). Sociedades operárias são vulneráveis: quando sobrevém uma depressão, os membros perdem empregos ou renda e param de comprar nas cooperativas, que ficam sem sustento. Assim, muitas cooperativas foram à falência simplesmente tragadas pela maré econômica, tanto quanto outras pequenas empresas privadas também sucumbiram nesses períodos.
  • Falta de suporte legal apropriado: Não havia uma legislação específica para cooperativas. Até 1852, essas associações só podiam registrar-se como “Sociedades Amigáveis” (Friendly Societies), um tipo legal voltado a clubes de seguros mútuos. Isso impunha restrições inadequadas: por exemplo, a lei proibia que tais sociedades fizessem comércio com não-membros (o que inviabilizava crescer e atrair clientela ampla) e não permitia divisão de lucros comerciais. Além disso, as cooperativas não tinham personalidade jurídica: os bens ficavam em nome de indivíduos fiduciários (“trustees”). Se um desses indivíduos agisse de má-fé ou fosse incompetente, os membros nada podiam fazer legalmente. Houve casos de tesoureiros que sumiram com o fundo social, arruinando cooperativas inteiras sem consequências. Também havia insegurança quanto a dívidas: se a cooperativa não estava formalmente registrada e um sócio contraía uma dívida em nome dela, todos os membros podiam ser cobrados ilimitadamente. Esse limbo jurídico desanimava: muitas iniciativas minguaram por temerem riscos ou simplesmente por não conseguirem operar dentro das leis vigentes.
  • Experiência administrativa limitada: Boa parte dos cooperados eram trabalhadores com pouca instrução formal em negócios. Assim, ocorreram casos de má gestão – registros financeiros falhos, compras mal planejadas, problemas de estoque. Diferentemente de um comerciante experiente, que vivia disso, os operários administravam a cooperativa em seu tempo livre, aprendendo na marra. Os erros cobraram seu preço. Sem educação administrativa e sem modelos consolidados para imitar, cada cooperativa pioneira estava tateando no escuro.
  • Benefícios pouco tangíveis no curto prazo: Nas primeiras experiências, o modelo de distribuição de ganhos ainda não estava refinado. Muitas cooperativas vendiam a preço de custo (ou margem mínima) e guardavam qualquer sobra para objetivos futuros, como abrir novas unidades ou adquirir terras. Ou seja, os membros não viam retorno financeiro imediato – não havia ainda o conceito de “dividendo ao consumidor” (que Rochdale introduziria). Assim, o associado podia questionar: “Estou economizando alguns centavos nas compras, mas não recebo lucro nenhum no fim do ano – vale a pena tanto esforço?”. Sem um incentivo material direto, era mais difícil manter o engajamento de todos a longo prazo, especialmente quando as circunstâncias melhoravam ou surgiam alternativas individuais.
  • Sacrifícios e fadiga: Tocar uma cooperativa exigia sacrifício pessoal. Reuniões noturnas, trabalho voluntário nas lojas, investimento de economias modestas – tudo isso era pesado para pessoas já exaustas do trabalho fabril. Enquanto a empolgação estava alta, isso foi suportado, mas conforme o tempo passou e os resultados transformadores não vieram, muitos desanimaram. Alguns preferiram buscar saídas individuais (mudança de cidade, migração para outro país, ou simplesmente focar no próprio sustento diário) em vez de perseverar num projeto comunitário incerto. Assim, muitas sociedades esmoreceram por falta de participação contínua.

O saldo dessa primeira onda, portanto, foi ambíguo. Por um lado, ela plantou as sementes: deixou um repertório de ideias, líderes experientes e mesmo algumas instituições embrionárias (como os congressos cooperativos, que serviram de modelo no futuro). Por outro lado, evidenciou os desafios reais de se construir cooperativas em uma economia hostil. Quando a euforia passou, restou a pergunta: seria possível um cooperativismo sólido e duradouro? Muitos contemporâneos ficaram céticos, achando que o entusiasmo dos anos 1820 fora um experimento romântico fadado ao fracasso. Contudo, nas décadas de 1840 as condições sociais continuavam difíceis, talvez até piores, e a ideia cooperativa permaneceu latente na memória de alguns. Era questão de tempo até alguém tentar de novo – aprendendo com os erros do passado.

Os Pioneiros de Rochdale (1844): Renascimento e Princípios do Cooperativismo

Em 1844, o cooperativismo britânico renasceu de forma vitoriosa. O local foi a cidade industrial de Rochdale, no norte da Inglaterra; os protagonistas, um grupo de 28 trabalhadores humildes (em sua maioria, tecelões desempregados ou subempregados). Eles fundaram, em 21 de dezembro de 1844, a Sociedade dos Probos (Honestos) Pioneiros de Rochdale (Rochdale Society of Equitable Pioneers), abrindo uma pequena loja de cooperativa na Rua Toad Lane. Esse evento – inicialmente modesto – é hoje reconhecido como o marco da primeira cooperativa de consumo bem-sucedida e sustentável do mundo. Mais do que isso, os Pioneiros de Rochdale estabeleceram um conjunto de princípios e práticas que se tornou o alicerce do cooperativismo moderno.

Por que Rochdale deu certo onde antes tantos fracassaram? Alguns fatores locais foram determinantes. Rochdale era um centro têxtil tradicional cuja economia passava por maus bocados: a introdução de teares mecânicos nas fábricas havia arruinado o ofício dos tecelões manuais, jogando muitos na miséria. Em 1842 e 1843, a cidade vivenciou greves e agitações trabalhistas, todas derrotadas, o que levou os operários a buscarem soluções alternativas. Assim, em 1844 o terreno estava fértil para experimentar algo novo – a cooperação econômica – já que os métodos convencionais (greves, protestos) não melhoravam suas vidas.

Além disso, Rochdale possuía uma rica vida associativa e política. Havia clubes de leitura, grupos de debate político, sociedades religiosas não anglicanas (como metodistas) e sindicatos ativos. Essa cultura de participação ajudou a difundir ideias progressistas. De fato, muitos dos fundadores da cooperativa de Rochdale já conheciam o ideário cooperativo: alguns tinham participado do movimento owenista na década anterior, outros haviam investido nas falidas comunidades de Queenwood (uma colônia cooperativa utópica organizada em 1842 em Hampshire). Portanto, diferentemente dos grupos dos anos 1820 que tateavam no escuro, os Pioneiros de Rochdale tinham memória histórica e lições anteriores de cooperativismo para guiá-los.

A composição do grupo também fez diferença. Os 28 integrantes incluíam pessoas relativamente qualificadas para os padrões operários – artesãos especializados que prezavam a respeitabilidade (dignidade pessoal e autossuficiência). Eram homens e mulheres (sim, Rochdale aceitou mulheres desde o início) que participavam de igrejas, associações de temperança (contra o álcool) e sociedades de socorro locais. Isso significa que já havia entre eles laços de confiança e disciplina. Eles conseguiram juntar, com sacrifício, uma libra esterlina cada para formar um capital inicial de £28 – gesto notável para quem ganhava salário ínfimo. Também combinaram, desde o princípio, manter a política e a religião fora da sociedade, adotando neutralidade, para evitar divisões internas. Essa sabedoria organizacional – aprendida com conflitos que minaram cooperativas anteriores – manteve o grupo coeso e focado no objetivo econômico comum, sem brigas sectárias.

Importante notar que, embora a cooperativa fosse uma iniciativa dos trabalhadores para si, eles não operaram em completo isolamento da sociedade maior. Alguns comerciantes e cidadãos de classe média simpáticos em Rochdale (influenciados por ideias cristãs de caridade e harmonia social) viram com bons olhos a experiência e até deram aconselhamento e pequeno crédito aos fundadores. Por exemplo, um atacadista local vendeu sacos de farinha fiado para a cooperativa iniciar suas vendas. Esse apoio moderado da comunidade deu um fôlego inicial – contrastando com lugares onde a hostilidade dos comerciantes sufocou cooperativas nascituros. Em Rochdale, aparentemente os donos de lojas não encararam os tecelões como grande ameaça no começo, talvez por acharem que aquela “lojinha dos pobres” não iria longe.

Com esses ingredientes – necessidade extrema, traquejo organizacional, união interna e algum apoio externo – os Pioneiros de Rochdale estavam prontos para escrever um capítulo diferente. E a chave de ouro desse novo capítulo foram os Princípios que eles adotaram. Logo nos primeiros anos, a Sociedade de Rochdale formalizou suas regras operacionais de um jeito tão eficaz que se tornou modelo. Os Princípios Cooperativos de Rochdale englobavam normas econômicas, sociais e morais para guiar a cooperativa. Apresentamos na tabela abaixo os principais princípios originais (circa 1844–45) e suas funções no modelo:

Princípio de RochdaleFunção e Racionalidade
Gestão Democrática (“um membro, um voto”)Garantir o controle democrático da sociedade pelos próprios cooperados. Cada associado, independentemente do capital investido, tinha direito a um voto nas assembleias. Isso impedia que algum sócio rico dominasse a cooperativa – diferentemente de empresas por ações, onde quem tem mais cotas manda mais. Em Rochdale, valia a vontade da maioria dos membros iguais, promovendo participação e responsabilidade coletiva.
Adesão Livre e AbertaManter a cooperativa aberta a todos de boa vontade, sem discriminação. Qualquer pessoa – homem ou mulher – que aceitasse os objetivos da sociedade podia se tornar membro comprando uma cota mínima. Essa abertura ampliava a base de sócios e estimulava o crescimento. Além disso, praticava-se a neutralidade política e religiosa: gente de qualquer crença ou filiação ideológica podia aderir. Isso evitou divisões internas e fez da cooperativa uma instituição ampla da comunidade, não um clube fechado.
Juro Limitado ao CapitalAtrair capital sem comprometer o controle coletivo. Os Pioneiros estabeleceram que o capital investido pelos sócios seria remunerado por um juro fixo e modesto (geralmente 5% ao ano), se houvesse lucro – e nada além disso. Ou seja, quem botou dinheiro receberia um retorno justo, mas não poderia reclamar participação ilimitada nos ganhos. Qualquer lucro excedente pertenceria à sociedade como um todo, não a investidores individuais. Esse princípio evitava que o propósito da cooperativa se corrompesse em busca de lucro para acionistas; o capital servia à cooperativa, e não o contrário. Também limitaram o número de cotas que um membro podia subscrever, justamente para impedir concentração de poder econômico interno.
Divisão de Sobras (“dividendo” ao consumidor)Socializar os resultados de forma proporcional ao uso e incentivar a fidelidade dos sócios. Após pagar todas as despesas, reservas e o juro fixo do capital, a cooperativa de Rochdale distribuía o restante do lucro líquido aos membros na proporção de suas compras na loja durante aquele período. Ou seja, quanto mais o sócio comprou na cooperativa (em vez de no comércio convencional), maior seria seu reembolso – uma espécie de restituição, chamada de dividendo. Esse sistema criou forte incentivo para os membros consumirem na própria cooperativa, aumentando o movimento da loja, e ao mesmo tempo beneficiou diretamente até os sócios mais pobres, pois todos recebiam de volta conforme suas compras, não conforme seu aporte de capital. Foi um dos grandes diferenciais de Rochdale em relação às experiências anteriores.
Venda de Produtos de Qualidade, com Pesos e Medidas JustasReconquistar a confiança do consumidor oferecendo excelência e honestidade. A loja de Rochdale se notabilizou por vender produtos de boa qualidade pura (não adulterados) e por seguir à risca as medidas corretas (sem enganar no peso). Em uma época em que os trabalhadores estavam acostumados a ser enganados por comerciantes (lembremos das fraudes comuns em alimentos), isso deu enorme credibilidade à cooperativa. Os clientes sabiam que ali suas famílias não seriam lesadas – uma vantagem intangível, mas poderosa. A reputação de honestidade atraiu mais membros e estabeleceu um padrão ético para todas as cooperativas vindouras.
Vendas à Vista (sem fiado)Proteger a saúde financeira da cooperativa e fomentar a responsabilidade dos sócios. Diferentemente das mercearias tradicionais da época, a cooperativa de Rochdale decidiu não vender a crédito – todas as compras deveriam ser pagas em dinheiro no ato. Isso chocava alguns acostumados ao fiado semanal, mas tinha razões sólidas: evitar inadimplência (que quebrara muitas cooperativas anteriores) e educar os membros a não contraírem dívidas impagáveis nas lojas. Essa disciplina financeira assegurou capital de giro à cooperativa e preveniu calotes. Embora inicialmente possa ter afastado alguns potenciais clientes sem dinheiro à mão, a comunidade logo se adaptou e aprovou a prática por considerá-la mais honesta e sustentável.
Educação dos MembrosInvestir no desenvolvimento dos cooperados e da comunidade. Desde os primeiros lucros, Rochdale separou uma parcela para criar um fundo educacional. Com ele, montou-se uma biblioteca de livros e jornais no salão da cooperativa e realizaram-se cursos noturnos de alfabetização, aritmética e temas diversos, voltados aos sócios e suas famílias. O propósito era duplo: capacitar os próprios membros para gerir melhor a sociedade (ou seja, formar dirigentes competentes vindos do grupo) e elevar culturalmente a classe trabalhadora, dando acesso ao conhecimento. Essa ênfase educacional gerou cooperados mais conscientes e engajados, e serviu à ideia de que a cooperativa não é só um armazém, mas também uma instituição de melhoria social.

Os Princípios de Rochdale formaram, assim, um sistema coeso. Não eram apenas ideias bonitas – eram práticas implementadas no dia a dia da loja, que resolveram muitos problemas enfrentados pelas cooperativas anteriores. Ao adotar venda só à vista e produtos de qualidade, eliminaram o risco de falência por calote e criaram confiança na clientela. Com dividendos proporcionais às compras, alinharam perfeitamente o interesse individual (comprar barato e receber retorno) com o coletivo (prosperidade da loja). Com democracia e adesão livre, garantiram união interna e constante renovação do quadro social. Com limite ao lucro do capital, asseguraram que a cooperativa jamais se tornaria apenas mais um empreendimento capitalista – sempre seria um meio para um fim social maior. E com educação, prepararam o terreno para expansão e continuidade geracional do movimento.

A adoção desses princípios logo se refletiu no sucesso prático. Nos primeiros anos pós-1844, a lojinha de Rochdale prosperou. As vendas cresceram mês a mês conforme mais pessoas entravam como sócias para aproveitar os benefícios. Em poucos anos, os Pioneiros ampliaram o sortimento: além de alimentos básicos como farinha, manteiga, aveia e açúcar, passaram a vender carvão, tecidos, roupas e calçados. Montaram padaria própria para fazer pão de qualidade. Em 1855, tinham capital suficiente para construir um grande armazém novo. Em 1857, contavam mais de 1400 membros ativos – um crescimento impressionante para quem começara com 28. Distribuíam dividendos periódicos polpudos (chegando a 10% ou mais sobre o valor das compras), o que impulsionava ainda mais gente a aderir. Rochdale se tornou vitrine da viabilidade cooperativa: delegações de toda parte visitavam para ver o “milagre” em funcionamento.

Mais que uma loja de sucesso, Rochdale transformou-se em um modelo replicável. Os princípios desenvolvidos ali foram sendo divulgados e adotados por novas cooperativas que pipocavam no país nas décadas seguintes. Tanto que, em 1860, a expressão “princípios de Rochdale” já era corrente nos meios cooperativos. Com algumas adaptações ao longo do tempo, esses princípios acabaram consagrados pela Aliança Cooperativa Internacional como os princípios gerais do cooperativismo mundial (até hoje, os sete princípios do cooperativismo guardam a essência do que Rochdale estabeleceu).

Expansão e Estruturação do Movimento (1845–1860s)

O sucesso dos Pioneiros de Rochdale inaugurou uma nova era para o movimento cooperativo. A partir de 1845, inspirados por Rochdale, trabalhadores em diversas localidades da Inglaterra começaram a fundar suas próprias cooperativas de consumo seguindo o modelo. A ideia espalhou-se como fogo em palha: finalmente havia um exemplo concreto e bem-sucedido a imitar, o que dava confiança e orientação aos grupos interessados.

Os anos 1850 foram de franca expansão cooperativa. Em muitas cidades industriais do norte, surgiram lojas cooperativas formadas por operários. Por exemplo, logo após Rochdale, fundaram-se cooperativas em Oldham (1847), Manchester (1850), Leeds (1847), Birmingham (1846), entre outras. Pequenas vilas mineradoras ou têxteis também criaram as suas. Em cada caso, seguiam-se de perto os princípios e estatutos de Rochdale – alguns literalmente copiavam o regimento dos Pioneiros com mínimas alterações. Assim, começava a se formar uma rede de sociedades familiares entre si, embora inicialmente independentes.

Em números, o crescimento foi notável: de cerca de 100 cooperativas em 1850, o Reino Unido (especialmente Inglaterra e País de Gales) chegou a ter quase 400 cooperativas de consumo em 1862. O total de membros cooperativistas, que em 1850 era uns poucos milhares concentrados em Rochdale e arredores, ultrapassou 90 mil pessoas em 1865. Essas cooperativas movimentavam um volume considerável de dinheiro em suas comunidades – por exemplo, a de Rochdale já vendia mais de £100 mil por ano na metade do século. O movimento deixava de ser marginal para se tornar um ator relevante no varejo de várias regiões.

Entretanto, a distribuição geográfica desse crescimento não foi uniforme. A expansão foi mais vigorosa nas regiões com forte presença operária organizada e tradição de luta coletiva. Por isso, o movimento cooperativo floreceu especialmente no norte da Inglaterra e nas Midlands. Cidades de Lancashire, Yorkshire, Cheshire, bem como centros mineiros no nordeste e no sul do País de Gales, aderiram ao cooperativismo com entusiasmo. Nesses lugares, a classe trabalhadora era coesa e já tinha experiência em sindicatos e sociedades de benefício mútuo – o terreno estava arado para a cooperação.

Em contrapartida, no sul da Inglaterra e em Londres, o avanço foi bem mais lento e esparso. Londres, apesar de sua população imensa, tinha uma força de trabalho mais fragmentada (muitos trabalhadores autônomos, serviços, pequenas oficinas) e a concorrência do comércio privado era muito forte, com lojas bem estabelecidas. As poucas tentativas de cooperativas londrinas enfrentaram hostilidade e dificuldade de se fixar. Tanto que somente no fim do século XIX o cooperativismo conseguiu se firmar em Londres de forma significativa. Alguns historiadores até falam em “desertos cooperativos” para certas regiões sulistas durante décadas.

Ainda assim, em praticamente todo canto industrial havia ao menos alguma presença cooperativa depois de Rochdale. Cada comunidade adaptava o modelo às suas condições. Em locais menores, às vezes a cooperativa era pequeníssima, operando num cômodo emprestado, atendendo poucas dezenas de pessoas – mas o espírito era o mesmo. Em centros maiores, as cooperativas bem-sucedidas cresceram e se diversificaram: por exemplo, em pouco tempo Rochdale e outras grandes sociedades passaram a ter diversas filiais pela cidade, além de açougues, padarias, armazéns de grãos próprios e até pequenas fábricas para produzir algo (como sapatos ou velas) aos seus membros.

Esse boom cooperativo encontrou também resistências e desafios novos. Os comerciantes privados, vendo seus lucros ameaçados, reagiram. Em algumas cidades, formaram ligas anti-cooperativas: negavam crédito aos fornecedores de cooperativas, faziam campanhas difamatórias (espalhando boatos de que as cooperativas eram “subversivas” ou “anticristãs” por pregarem igualdade), tentavam corromper líderes cooperativos etc. Houve casos em que fornecedores pressionados boicotaram vendas para cooperativas, tentando estrangular seu abastecimento. Sempre que isso acontecia, as cooperativas sofriam – algumas quebraram por não conseguir mais comprar mercadorias a preços viáveis. Essa luta comercial foi particularmente acirrada em cidades mercantis tradicionais e mais conservadoras.

Outro problema era a atuação isolada de cada cooperativa. Embora todas admirassem Rochdale, até meados dos anos 1860 não havia ainda uma organização unindo-as formalmente. Cada sociedade cooperativa operava por conta própria, negociando com atacadistas e definindo seus preços. Isso as deixava expostas: grandes comerciantes, com poder de compra maior, ainda levavam vantagem em obter descontos junto a fornecedores. Além disso, sem união formal, as cooperativas não compartilhavam plenamente recursos e informações – perdiam oportunidades de ganho em escala.

Mas essa situação começou a mudar à medida que líderes cooperativistas perceberam que a intercooperação seria o próximo passo crucial. Já em 1850, Rochdale ensaiou vender por atacado para cooperativas menores da região, mas sem muito sucesso. Uma iniciativa importante foi a fundação da Central Co-operative Agency em Londres (1850), apoiada por intelectuais cooperativos ligados ao grupo dos Socialistas Cristãos. Essa agência foi uma tentativa de criar um escritório central de compras e vendas cooperativas a nível nacional. Contudo, durou poucos anos (fechou por volta de 1855) devido a disputas e capital insuficiente.

A verdadeira solução veio no começo da década de 1860, quando cooperativas do norte da Inglaterra uniram forças para criar a sua própria entidade atacadista. Em 1863, fundou-se a Co-operative Wholesale Society (CWS), sediada em Manchester, como um empreendimento de “segundo grau” – uma cooperativa cujos membros eram as cooperativas locais. A CWS começaria a operar em 1864, comprando em grandes quantidades diretamente de produtores (ou importando do exterior) e distribuindo para as cooperativas associadas. Esse foi um passo gigantesco no fortalecimento estrutural do movimento: com a CWS, as cooperativas ganharam poder de barganha similar ao dos grandes comerciantes e puderam enfrentar de igual para igual a concorrência. (Detalhes sobre a criação da CWS serão explorados adiante.)

Outro pilar de estruturação veio no campo político e legal. Na esteira da expansão cooperativa e sob influência de simpatizantes (incluindo membros do Parlamento ligados ao movimento, como Edward Vansittart Neale), foram aprovadas leis específicas: o Industrial and Provident Societies Act de 1852 e sua revisão de 1862. Essas leis legalizaram plenamente as cooperativas, permitindo seu registro oficial com status de pessoas jurídicas, restringindo a responsabilidade dos sócios (responsabilidade limitada) e removendo a absurda cláusula que as proibia de vender a não-membros. Com isso, a partir de 1852/1862 as cooperativas passaram a operar com segurança jurídica, podendo inclusive recorrer à justiça se alguém as fraudasse. Isso estimulou ainda mais gente a aderir ou investir, pois o risco jurídico diminuíra imensamente. Em 1867, outro ato legal autorizou explicitamente a distribuição de lucros como dividendos aos consumidores – consagrando assim a prática de Rochdale na lei.

Enquanto as cooperativas de consumo prosperavam, houve também iniciativas em outros ramos durante esse período, embora menores em escala. Alguns grupos de artesãos e operários tentaram cooperativas de produção (fabricação). Por exemplo: sociedades de sapateiros, de alfaiates e de construtores em Londres nos anos 1850 (incentivadas pelos já mencionados Socialistas Cristãos); uma cooperativa de fiação de algodão em Rochdale nos anos 1850; uma cooperativa de mineração de carvão chegou a ser cogitada. No geral, porém, as cooperativas de produção enfrentaram dificuldades maiores – concorrer com fábricas capitalistas exigia mais capital e técnica, e poucas dessas sociedades perduraram mais que alguns anos. Um caso de sucesso relativo foi a Cooperativa de tintureiros de Hebden Bridge (fundada em 1870), que sobreviveu por décadas e se tornou referência para o ramo de produção.

Em síntese, por volta do final da década de 1860, o cooperativismo inglês já contava com uma base ampla e consolidada de cooperativas de consumo locais e começava a desenvolver instituições centrais. A criação da CWS (1863) e de uma entidade organizativa nacional (a Co-operative Union, em 1869) marcam o fim dessa fase expansionista e o início de uma fase de consolidação e integração nacional do movimento.

Integração Nacional: CWS e Co-operative Union (anos 1860)

Conforme vimos, a Co-operative Wholesale Society (CWS), fundada em 1863, foi o grande passo para integrar economicamente as cooperativas britânicas. Até então, cada sociedade comprava seus produtos de fornecedores convencionais; a CWS veio para centralizar e coordenar as compras e a distribuição em escala nacional. Todas as cooperativas locais participantes viraram acionistas da CWS, comprando cotas da nova entidade. Com capital e demanda garantida, a CWS montou depósitos e escritórios em Manchester e passou a negociar diretamente com grandes fornecedores.

Os resultados foram rápidos e notáveis: a CWS conseguia adquirir, em grandes lotes, açúcar, farinha, chá, sabão, tecidos, etc., a preços muito inferiores ao que cada cooperativa isolada pagaria. Assim, as lojas cooperativas passaram a ter ainda mais vantagem em preço e qualidade sobre os comerciantes privados. Além disso, a CWS – controlada democraticamente pelas próprias cooperativas – repassava eventuais lucros de volta às associadas, como um dividendo proporcional às compras de cada uma (aplicando entre cooperativas o mesmo princípio de Rochdale aplicado entre indivíduos). Era cooperação praticada em escala macro.

Não demorou para a CWS expandir suas atividades. Na década de 1870, ela começou a produzir bens também: montou suas próprias fábricas e instalações para assegurar fornecimento. Criou moinhos de trigo, torrefadoras de café, fábricas de calçados e de cigarros, açougues e charqueadas. Até navios foram comprados para importar grãos e carne da América. O império comercial cooperativo tomava forma. A integração vertical (do produtor ao varejo) dava ao movimento uma independência sem precedentes do mercado capitalista tradicional. Se antes uma cooperativa local podia ser boicotada por fornecedores, agora o movimento como um todo tinha seu próprio atacadista e, pouco a pouco, seus próprios produtores.

No plano organizativo e político, o movimento criou também a Co-operative Union em 1869. Essa entidade federativa (uma espécie de confederação) reunia as cooperativas para fins de representação política, educação, intercâmbio de informações e organização de eventos (como os Congressos Cooperativos anuais, retomados em 1869 de forma regular). A União Cooperativa ajudou a padronizar estatutos, resolver disputas entre cooperativas, e fez lobby junto ao governo em defesa de leis favoráveis. Também criou comitês regionais e publicou materiais educativos.

Com a CWS e a Co-operative Union, pode-se dizer que na virada da década de 1870 o cooperativismo britânico se convertia em um movimento nacional articulado – com duas grandes colunas institucionais: uma econômica (a CWS) e outra política-educacional (a União). Essa dupla estrutura deu longevidade e resiliência extraordinárias ao movimento.

Um ponto a destacar: mesmo com maior organização, as cooperativas mantiveram sua autonomia local e princípios democráticos. Cada cooperativa local enviava delegados para as assembleias gerais da CWS e da Union. Não houve centralização autoritária; ao contrário, a cooperação entre cooperativas foi voluntária e construída de baixo para cima, respeitando a essência democrática.

Ao longo dos anos 1860, a legislação continuou melhorando: a lei de 1862 (já mencionada) permitiu cooperativas de segundo grau como a CWS; posteriormente, leis tributárias isentaram cooperativas de certos impostos onerosos (por exemplo, isenção de imposto sobre lucros não distribuídos aos acionistas, já que cooperativas não tinham “acionistas” auferindo dividendos comuns). Essas vitórias legais foram, em parte, fruto do peso econômico crescente do movimento e de sua capacidade de pressão através da Co-operative Union e de parlamentares aliados.

Consolidação e Legado (1870–1900)

Nas últimas décadas do século XIX, o cooperativismo britânico alcançou sua maturidade. O período de 1870 a 1900 foi de consolidação interna e difusão externa do modelo.

Em termos numéricos, o movimento atingiu seu apogeu: por volta de 1900 havia cerca de 1.400 cooperativas de consumo registradas no Reino Unido, somando mais de 1,5 milhão de membros (num país de 30 milhões de habitantes à época). Isso significava que uma parcela significativa de famílias trabalhadoras comprava regularmente em cooperativas. Em algumas localidades, a cooperativa era a principal rede de varejo, suplantando mercearias convencionais. Os dividendos pagos aos membros tornaram-se parte importante da renda familiar operária – muitos esperavam a restituição periódica para comprar roupas ou pagar contas maiores.

A Co-operative Wholesale Society tornou-se uma potência industrial: nas duas últimas décadas do século, a CWS ampliou seu leque de operações, estabelecendo fazendas (para fornecer leite e carne), minas de carvão, bancos próprios (para financiar cooperativas), e até entrando no ramo de seguros e construção de moradias para membros. A sede da CWS em Manchester cresceu para abarcar escritórios, depósitos e fábricas, e a sociedade abriu filiais em outros países para facilitar importações (chegou a ter um escritório em Nova York e uma rede de compradores no império britânico e na Europa). Esse complexo cooperativo empregava dezenas de milhares de trabalhadores – ironicamente, não cooperativos (empregados assalariados a serviço da CWS); mas os donos, formalmente, eram as cooperativas locais e portanto, indiretamente, os milhões de cooperados base.

No front social e cultural, o movimento manteve seu compromisso com a educação e a melhoria da comunidade. As cooperativas locais, em conjunto, tinham milhares de bibliotecas e salas de leitura abertas aos associados. Organizaram-se palestras, cursos e eventos regularmente. Em 1883, as cooperativas fundaram em Manchester uma instituição nacional de ensino, o Co-operative College, para formar gestores e difundir o pensamento cooperativo (o colégio se desenvolveria mais formalmente no século seguinte).

Politicamente, ainda que a Co-operative Union não fosse um partido, o movimento cooperativo começou a ter representantes dedicados: em 1881, pela primeira vez um cooperativista (A. Greenwood) foi eleito para o Parlamento britânico. Em 1917, fundar-se-ia o Co-operative Party, partido político do movimento (mas esses desenvolvimentos transcendem o século XIX; mencionamos apenas como desdobramento lógico da consolidação).

Internacionalmente, o prestígio do modelo Rochdale se espalhou. Desde os anos 1850, reformadores de outros países visitavam as cooperativas inglesas e traduziam seus estatutos. Sociedades similares brotaram em diversos países: cooperativas de consumo na França, na Itália e nos Estados Unidos seguiram o exemplo de Rochdale; o movimento cooperativo se implantou com força também na Alemanha (embora lá com ênfase em cooperativas de crédito e agrícolas, sob outros pensadores). Em 1895, foi fundada em Londres a Aliança Cooperativa Internacional (ACI), reunindo delegados de cooperativas de vários países – um testemunho de que a “revolução silenciosa” iniciada na Inglaterra tinha se tornado um fenômeno global. A ACI adotou oficialmente os Princípios de Rochdale em sua carta, difundindo-os mundo afora.

Na Inglaterra, o movimento cooperativo consolidado serviu como força de elevação social dos trabalhadores. Além de melhorar condições de consumo (preços mais baixos, produtos honestos), as cooperativas deram aos associados uma formação cidadã: aprender a discutir em assembleia, a eleger conselhos, a administrar recursos coletivos, tudo isso eram experiências democráticas concretas em uma sociedade que ainda negava muitos direitos aos pobres (vale lembrar que, até 1867, a maioria dos operários nem direito ao voto político tinha; o sufrágio universal masculino só veio em 1884). As cooperativas foram locais onde a classe trabalhadora exercitou a autogestão e provou sua capacidade. Isso fortaleceu a autoestima e a coesão da comunidade, contribuindo inclusive para conquistas futuras (como o avanço do sindicalismo e a criação de partidos laboristas no início do século XX).

É interessante avaliar críticas e elogios ao cooperativismo inglês do século XIX. Alguns marxistas posteriores argumentaram que o movimento cooperativo serviu para “domesticar” a classe trabalhadora, distraindo-a da luta revolucionária e integrando-a ao sistema capitalista (afinal, não derrubou o capitalismo, apenas conviveu com ele oferecendo alívio). Contudo, muitos historiadores contemporâneos veem de forma diferente: apontam que as cooperativas criaram um espaço econômico alternativo e solidário dentro do capitalismo, e que isso empoderou os trabalhadores sem recorrer à violência ou à caridade elitista. O historiador Peter Gurney, por exemplo, ressalta que o cooperativismo inglês constituiu uma “cultura do consumo consciente” entre os operários, politizando até o ato de comprar pão.

De fato, o legado duradouro é inegável. O modelo cooperativo mostrou que é possível fazer negócios de outro modo – priorizando pessoas, não lucro. Comparado a outras empresas do século XIX, uma cooperativa devolvendo sobras aos clientes e gerida pelos próprios clientes era algo revolucionário em termos de prática (embora pacífica em meios). O movimento cooperativo mitigou abusos: em cidades com cooperativas fortes, os comerciantes privados tiveram que moderar suas margens para competir; a qualidade média dos produtos aumentou por pressão do consumidor organizado; e a ideia de responsabilidade social nos negócios ganhou terreno.

Ao final do século XIX, o cooperativismo na Inglaterra estava tão entranhado que se tornou parte do cotidiano. E perdurou: atravessou o século XX (com altos e baixos) e existe até hoje – a Co-operative Group, herdeira da CWS, ainda opera supermercados, bancos e outros serviços no Reino Unido, sendo uma das maiores cooperativas do mundo com quase 5 milhões de membros.

Em suma, a história do cooperativismo inglês nos séculos XVIII e XIX é a história de como, em meio a adversidades extremas, pessoas comuns conseguiram se organizar coletivamente para criar soluções econômicas solidárias. Dos motins da fome às prateleiras dos supermercados cooperativos, houve uma longa caminhada pautada por princípios de solidariedade, democracia e autossuficiência. Essa experiência pioneira lançada em Rochdale acendeu uma luz que se espalhou globalmente, inspirando outros povos (inclusive os precursores do cooperativismo no Brasil, como o padre Theodor Amstad, que em 1902 fundaria a primeira cooperativa de crédito brasileira seguindo lições de Rochdale).

A trajetória inglesa evidencia desafios – recursos escassos, oposição do mercado, necessidade de educação – mas mostra que, com persistência e inovação, um movimento social pode construir alternativas viáveis dentro do próprio sistema. O cooperativismo britânico do século XIX legou ao mundo uma prova concreta de que “existe mais de uma forma de fazer negócios”, uma forma em que valores humanos se sobrepõem ao lucro pelo lucro e ainda assim alcança sucesso econômico. Esse legado mantém-se relevante, lembrando-nos do poder da cooperação para enfrentar coletivamente os problemas que sozinhos não podemos resolver.


Elaborado pelo Portal do Cooperativismo Financeiro