“O lugar que ocupamos é menos importante do que aquele para o qual nos dirigimos” (Leon Tosltói)
Texto de Ênio Meinen*
Ninguém entre os atores do cooperativismo de crédito brasileiro tem dúvida de que o setor avançou consideravelmente nos anos mais recentes, aproveitando-se, como fator externo, das prerrogativas legais e regulamentares, e, internamente, do aperfeiçoamento da gestão.
Mas, considerando o propósito maior de figurarmos entre as instituições que “fazem diferença” ou “exercem real influência” no meio financeiro, há muito trabalho pela frente. O bom, no entanto, é que, além de conhecermos os nossos “gargalos” – que, no conjunto, ainda nos distanciam consideravelmente da base ideal de associados e do volume mínimo de negócios esperado -, sabemos que as soluções para um futuro melhor se situam exclusivamente em nossa “área de influência”.
Neste artigo convido-os a refletirem sobre oito temas que se encontram no rol de nossos maiores desafios no macrocampo da gestão. Para facilitar o entendimento, ordenarei a abordagem de modo a evidenciar, em primeiro plano, o estado (ou o comportamento) ideal; logo a seguir, as lacunas ainda existentes em relação a cada aspecto, e, por fim, apresentarei – sem a pretensão de esgotamento da lista de iniciativas – quatro possíveis medidas para aproximar (no sentido positivo) as duas perspectivas.
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1. Postura sistêmica
1.1 – O IDEAL: valer-se adequadamente dos benefícios do ganho de escala, da economia de escopo e da sinergia entre as diferentes entidades.
1.2 – O REAL: embora já possamos notar apreciável evolução nesse particular, com exemplos louváveis dentro de nosso movimento, ainda carecemos, no geral, de:
a) maior uniformização de políticas, produtos/serviços e processos, bem como de uma sintonia mais visível entre os líderes das diferentes entidades federadas (estamos, ainda, distantes da almejada “coalização sistêmica”);
b) uma efetiva redução do paralelismo e da sobreposição de estruturas e de ações em diversas áreas (singulares, centrais, confederações e bancos cooperativos);
c) um melhor aproveitamento das possibilidades de alocação corporativa de componentes organizacionais cujas atividades tenham repercussão sistêmica;
d) maior compromisso com soluções e projetos corporativos (negócios e retaguarda).
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2. Aglutinação entre cooperativas
2.1 – O IDEAL: aproveitar os benefícios do ganho de escala (limites operacionais, volumes x política de precificação, expansão da rede e do número de associados etc) e da racionalidade administrativa.
2.2 – O REAL: nos últimos três anos, tivemos cerca de 90 processos de união entre cooperativas dos diferentes sistemas, iniciativas juridicamente classificadas como incorporações. Mesmo reconhecendo que estamos mais atentos a essa oportunidade, podemos:
a) ser mais diligentes com o tema, iniciando (mediante coordenação das respectivas centrais) por um planejamento que, a partir do redesenho da área de atuação coberta pela central, preveja ações de curto, médio e longo prazos;
b) dar ênfase às cooperativas cujos quadros sociais tenham afinidade imediata, sejam complementares entre si (ex.: cooperativas com associados de perfil mais poupador unindo-se a cooperativas com cooperados mais demandadores de recursos) eou cujas áreas de atuação sejam coincidentes ou contínuas, induzindo o processo com vistas a um melhor aproveitamento das oportunidades de mercado;
c) ser mais arrojados na abordagem e na implementação de ações, de modo a impedir que cooperativas que estejam em situação confortável hoje se tornem inviáveis amanhã (as incorporações devem também ter caráter preventivo, não se prestando apenas como medidas reativas para salvar cooperativas com problemas).
- Aqui vale uma ilustração, que bem denota a importância que se deve atribuir a essa iniciativa: há poucos dias estivemos visitando, em Giessen (cidade de 70.000 habitantes), na região central da Alemanha (Hessen), o banco cooperativo (volksbank) Mittelhessem, cujo dado mais representativo – e inédito – em sua história é o fato de ter passado por 200 (isso mesmo!) incorporações. Hoje é o terceiro maior banco cooperativo alemão – excluindo os dois bancos centrais -, e tem entre os seus beneficiários um em cada dois habitantes de sua área de atuação;
d) por iniciativa das respectivas confederações, inserir as cooperativas centrais na pauta de discussões, pois as aglutinações nesse âmbito, além de convenientes e próprias para “servir de exemplo”, já se constituem necessárias em muitos casos.
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3. Estrutura patrimonial
3.1 – O IDEAL: manter, em todos os níveis da estrutura sistêmica, patrimônio adequado para os investimentos, as operações (limites) e o suporte aos riscos de crédito, mercadoliquidez, operacionais e outros (Basileia).
3.2 – O REAL: a situação chega a ser de relativo conforto em um número razoável de cooperativas singulares que adotam soluções criativas para angariar capital e ampliar reservas, ou que definem regras para capitalização contínua. Entretanto, na grande maioria das cooperativas, especialmente ao se considerar o volume de negócios que podem (ou devem) ainda alcançar, a estrutura de capital mostra-se acanhada. Também em grande parte das centrais, confederações e nos bancos cooperativos, tendo em vista a alavancagem mais aguda e o elevado nível de investimentos de sua responsabilidade, não há sobra de patrimônio. O quadro, no geral, indica que devemos:
a) adotar política corporativa de gestão de capital, aproveitando a indução do ambiente normativo representado pela Resolução CMN 3.988, de 30-6-11, e também por conta de Basileia III, como medida preventiva, estruturada e permanente para fortalecer o patrimônio operacional em todos os níveis sistêmicos;
b) aproveitar os recursos externos oferecidos para financiar a subscrição e integralização de novas quotas-partes de capital nas cooperativas singulares (ex.: Procapcred e recursos próprios geridos pelos bancos cooperativos);
c) buscar parcerias com entidades/organismos externos para atrair capital novo para os bancos cooperativos, a ser empregado no desenvolvimento de projetos de interesse comum;
d) insistir nas ações mais elementares, traduzidas por campanhas de capitalização e por retenções mais expressivas de sobras (densificação dos fundos de reservas e de contingências), além de ampliar o intercâmbio (entre as entidades de todos os níveis), inclusive intersistêmico, para observar boas práticas de atração de capital.
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4. Ampliação da base de associados
4.1 – O IDEAL: aproveitar satisfatoriamente o potencial associativo (redução do “gap” entre associados possíveis x associados efetivos), paralelamente à “recuperação” de associados inativos ou semiativos.
4.2 – O REAL: é ainda vastíssimo o universo de associados a serem conquistados pelas cooperativas, sejam elas segmentadas, “semiabertas” ou de livre admissão, independente do território por elas ocupado. Em muitos casos, aliás, esse distanciamento nem é percebido, pois inexiste até mesmo a noção sobre o universo possível de novos entrantes. Além (e antes) disso, nota-se desatenção com o universo de associados inativos ou pouco participativos na vida da cooperativa. Para melhorar o posicionamento neste particular, as cooperativas (com o apoio de suas respectivas centrais), podem:
a) como primeira providência, paralelamente a uma abordagem dedicada ao contingente de associados já existente (sejam eles “parcialmente” ativos ou inativos, visando a expandir o relacionamento negocial), promover um levantamento do mercado potencial de novos cooperados, ampliando a rede de atendimento sempre que necessário (sabe-se que há um número representativo de comunidades não assistidas, embora as localidades figurem das áreas de atuação estatutárias. Isso implica uma “reserva de mercado” improdutiva e nociva aos interesses sistêmicos);
b) definir estratégias de abordagem dos possíveis/potenciais entrantes, com atenção especial ao público mais jovem e à população (pessoas físicas e jurídicas) dos médios e grandes centros urbanos, onde o grau de penetração é irrisório (aqui entra o diálogo com lideranças do grupo potencial; divulgação da cooperativa na mídia local/regional; participação mais ativa em eventos da comunidade ou dos grupos de interesse etc).
- Ainda sobre os aglomerados urbanos, um dado interessante, que bem demonstra o nosso descompasso em relação ao mercado: enquanto os empréstimos dos bancos nessas áreas representam 75% do total da carteira, os das cooperativas atingem meros 25% (já nas comunidades interioranas, onde somos mais efetivos, a relação se inverte);
c) estabelecer metas (diárias, semanais, quinzenais, mensais…) de “recuperação” e de conquista de (novos) associados, por ponto de atendimento;
d) aglutinar-se (sob a coordenação das respectivas centrais), pois o aumento dos limites operacionais (patrimônio de referência mais substantivo), a ampliação da rede de atendimento, a diluição do custo administrativo etc, constituem estímulos importantes para a atração de associados.
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5. Oferta de produtos e serviços ecléticos e competitivos
5.1 – O IDEAL: dispor de (e explorar) amplo portfólio de soluções negociais no interesse do associado (com custo atraente, qualidade e comodidade de acesso), restringindo os apelos à infidelidade.
5.2 – O REAL: embora já seja razoável a quantidade de produtos e serviços à disposição das cooperativas (especialmente quanto às soluções bancárias clássicas), há considerável espaço para aperfeiçoamentos, tanto na adequada exploração do portfólio, quanto no seu incremento. Para tanto, podemos/devemos:
a) dar o exemplo, no âmbito dos conselheiros, dirigentes, executivos e colaboradores quanto ao uso efetivo dos produtos e serviços oferecidos pela própria cooperativa, descontinuando o relacionamento com outras instituições financeiras (o cartão de crédito é sempre um bom exemplo!);
b) intensificar a oferta aos associados e, conforme o caso, a terceiros, dos produtos e serviços já disponíveis;
c) dar ênfase a produtos e serviços como cartões, seguros, cobrança, arrecadações, consórcios, previdência privada, intermediação de quotas de fundos de investimento, captação de poupança rural e originação de crédito consignado;
d) promover diligências (cobrando e participando) para que as soluções corporativas/sistêmicas sejam mais efetivas, tanto na rapidez da entrega, quanto na adequabilidade e na competitividade (qualidade, custo e comodidade).
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6. Governança
6.1 – O IDEAL: dispor de uma gestão legitimada, participativa e profissional, combinando soluções que considerem a defesa dos interesses dos associados e respeitem os padrões técnicos de mercado.
6.2 – O REAL: aqui também é correto afirmar que, mais recentemente, especialmente por movimentos de indução do Banco Central do Brasil e como resultado da evolução conceitual e técnica dos dirigentes, boa parte das cooperativas vêm apresentando bons exemplos de governabilidade. Contudo, mesmo nessas entidades mais avançadas, e muito mais nas outras, há oportunidades para aprimoramentos, destacando-se:
a) a necessidade de revisitação da política e das práticas de representatividade do quadro social (todos os grupos homogêneosafins devem sentir-se parte da cooperativa);
b) o empenho para o aperfeiçoamento estratégico e técnico dos dirigentes (a participação em eventos de capacitação, especialmente os promovidos pelas entidades de segundo e terceiro níveis do sistema associado), e também para uma dedicação mais substantiva (tempo de expediente) aos interesses da cooperativado quadro social;
c) a criação de meios/canais apropriados para atrair o interesse e a participação dos associados (processos de nucleação; reuniões locais, pré-assembleias etc);
d) a busca por uma maior fidelidade aos modelos de governança definidos sistemicamente e apoiados pelo Banco Central.
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7. Gestão de pessoas
7.1 – O IDEAL: instituir políticas de gestão de pessoas que permitam atrair e reter bons profissionais.
7.2 – O REAL: talvez aqui residam as nossas maiores deficiências, considerando o conjunto do cooperativismo de crédito (reconhecidas, com louvor, as exceções pontuais). As razões possivelmente concentram-se na forma como alguns dirigentes ainda veem as cooperativas, não as reconhecendo como verdadeiras empresas, que atuam em um mercado complexo e altamente competitivo. Por isso, é recomendável que estejamos atentos às práticas virtuosas (e vitoriosas), que passam essencialmente:
a) pela aplicação das soluções sistêmicas, pois concebidas por profissionais preparados e conhecedores do segmento, amplamente debatidas com os representantes das cooperativas (via centrais);
b) pelo nivelamento das remunerações com o mercado (incluindo premiação por produtividade e benefícios), respeitando a proporcionalidade (tamanho) e a condição econômico-financeira de cada entidade;
c) pela concessão de incentivos de longo prazo (ex.: previdência privada patrocinada), e pelo reconhecimento, nas movimentações, do mérito individual, como estímulos à fidelidadeà permanência nas nossas entidadesempresas;
d) pela contratação (e retenção) apenas de pessoas de “bem com a vida”!
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.8. Preparação da força de trabalho
8.1 – O IDEAL: preparar intensivamente os quadros técnicos no viés comercial, sem descuidar da perspectiva dos controles.
8.2 – O REAL: o nosso “faro” e a nossa “pegada” para os negócios estão muito aquém do desejado. Somos, no geral, mal preparados e pouco arrojados nesse particular (não gostamos de nos colocar do “balcão” para fora). De outro lado, é perceptível uma maior preocupação e um maior envolvimento com os controles (justificável diante de problemas já vividos pelo setor), o que não deixa de ser uma postura correta. Só que precisamos equilibrar forças, pois sem negócios a atuação na retaguarda perde em significado. Daí que devemos avançar – e aceleradamente -, iniciando, por exemplo:
a) pela definição de prioridades de capacitação (do > para o < impacto em negócios e riscos), após diagnóstico sobre o estágio atual (planejamento do processo de capacitação);
b) pela aplicação dos conteúdos e das metodologias de capacitação sistêmicos (muitas vezes nem mesmo conhecemos os nossos produtos e serviços, pois não nos dispomos a ler os manuais e regulamentos pertinentes);
c) pelo envolvimento efetivo/intensivo das equipes alocadas nas entidades de segundo nível e nas empresas corporativas na preparação da força de vendas (campo dos negócios);
d) pela associação da capacitação (visando ao domínio sobre os produtos e serviços – incluindo a sua repercussão no resultado, bem sobre as técnicas de vendas a serem empregadas em sua oferta aos associados e terceiros) a um plano arrojado de metas (por produto e serviço disponíveis na cooperativa, subdividido por ponto de atendimento).
As ações e os comportamentos aqui recomendados certamente não esgotam as soluções a nos conduzirem para o mundo ideal. Contudo, se aplicados em sua essência, certamente farão diminuir a amplitude de nossas dificuldades atuais, contribuindo, assim, para que encurtemos o caminho que nos separa dos almejados dois dígitos de participação no mercado. E diante do DEVER, SABER e do PODER (as soluções são de nosso domínio e de nossa responsabilidade), precisamos, fundamentalmente, de ATITUDES, sem muita demora!
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* Ênio Meinen é advogado, diretor operacional do Bancoob e autor de várias obras sobre cooperativismo de crédito.
Grande Colorado, parabéns pela sapiência e inspiração ao escrever este texto, foste brilhante, guardo para mim e compartilho por onde passo o teu último parágrafo e quando indagado pela OCB porque não avançamos com mais velocidade na participação de mercado, minha resposta foi FALTA ATITUDE, os meios já existem, o espectro normativo é amplo, os apoios são grandes, de novo FALTA ATITUDE. Mas chegaremos lá. Um grande abraço.
Parabéns conterrâneo!
A leitura de tal esplanação clara e objetiva fazem parte deste perfil tão peculiar que é o seu!
Obrigada por compartilhar mais esta pérola!
Não deveria nos surpreender ver colocações tão claras como as citadas em mais essa obra prima do nosso colega Ênio Meinen. É um grande privilégio poder dividir cotidianamente os nossos desafios profissionais no campo de batalha do cooperativismo de crédito brasileiro com um profissional com tamanha proficiência no tema.
Cabe agora a todos nós, em especial àqueles que ocupam posições de maior protagonismo no âmbito dos sistemas de crédito cooperativo, aproximar as “dicas” do nosso colega do nosso dia-a-dia.
Parabenizo o amigo cooperativista Enio Meinen pela clareza na exposição das idéias e do ponto de vista. Precisamos evoluir em muitos assuntos no Cooperativismo de Crédito brasileiro, notadamente na cooperação inter-sistêmica. A cooperação não se dá apenas entre associados, mas também deve ocorrer entre cooperativas, entre centrais, entre estados, e entre diferentes sistemas. Juntos e organizados podemos ser mais fortes para fazer frente aos grandes bancos brasileiros e aí sim conquistar os dois dígitos na participação de mercado.