Teremos ficado … para sempre … À margem de nós mesmos …
(Fernando Pessoa)
O conselho fiscal, como órgão social das sociedades cooperativas, tem o seu funcionamento – ininterrupto e compulsório – garantido pela Lei 5.764/71, mais conhecida como Lei Cooperativista. No caso específico das instituições financeiras cooperativas, agrega-se o reforço da Lei Complementar 130/09, que estende o mandato dos conselheiros para até 3 (três) anos.
Essa circunstância formal, contudo, não impede que, no mérito – e a qualquer tempo -, se reexamine a sua presença no meio cooperativo, promovendo-se o ajuste legislativo pertinente, lembrando que as organizações perenes são dinâmicas e, à luz do mercado em que militam e conforme sua própria marcha, se reinventam constantemente, recompondo suas estratégias, seus modelos de gestão e, em decorrência, suas estruturas.
Nessa linha evolutiva, com efeito, há um movimento recente que, ao ser conjugado com o inegável desprestígio – salvo exceções localizadas – do conselho fiscal ao longo do tempo, no mínimo recomenda reflexões mais sérias acerca da atuação do colegiado no meio cooperativo-financeiro.
Trata-se da instituição do REGIME DUAL DE ADMINISTRAÇÃO (obrigatório para as cooperativas de livre admissão, de empreendedores e as compostas por associados com vínculos associativo-econômico-sociais comuns), que proclama a segregação entre direção estratégica e gestão executiva. Nesse novo formato de governança, introduzido pela Lei Complementar 130/09 e regulamentado pela Resolução CMN 3.859/10, o conselho de administração, de acordo com as melhores práticas de gestão, amplamente difundidas, passa a assumir dois papéis fundamentais: de um lado, decide acerca das medidas estratégicas no interesse do quadro social da cooperativa; de outro, ao acompanhar de perto os atos dos executivos (diretores) que elege, trata de assegurar o fiel cumprimento de suas deliberações. Dito de outra forma, o conselho de administração define o caminho e supervisiona o percurso!
Com isso, nesse grupo substantivo de cooperativas, uma parte essencial – possivelmente a mais relevante – da ação fiscalizatória, que é a de supervisionar os atos propriamente ditos da administração, estará sendo absorvida pelo próprio colegiado administrativo. E se o conselho fiscal também o fizer, estabelece-se a indesejável e combatida sobreposição de atividades. A propósito, considerando um universo aproximado de 1.200 cooperativas, estima-se que o movimento seja gerido por cerca de 13.000 administradores eleitos, que se somam aos 7.200 conselheiros fiscais (entre efetivos e suplentes). Ou seja, são 20.000 estatutários – quase todos remunerados ou cuja atuação é pelo menos livre das despesas de deslocamento e alimentação – para um setor que representa algo como 2% dos ativos do sistema financeiro nacional, ao passo que o restante das instituições financeiras, que detêm 98% do PIB financeiro, reúne em torno de 6.000 ocupantes de cargos eletivos.
Bem diferente dessa realidade, como uma espécie de extremo oposto e servindo como referência internacional de racionalidade e de virtuosismo na seara da governança cooperativa, tem-se a experiência alemã. Lá, existe apenas o “conselho de vigilância” que, ressalvados alguns poucos aspectos, corresponde ao conselho de administração daqui, pois é quem escolhe os diretores (assim como os substitui), define as diretrizes de sua atuação e os supervisiona. Não há um segundo órgão na estrutura de gestão superior do cooperativismo financeiro local, que responde por 20% da indústria financeira do país.
Por aqui, para dar conta de suas incumbências à luz do novo modelo de governança, o conselho de administração, em várias cooperativas, já vem instituindo comitês estratégicos/especializados que acompanham a gestão executiva de perto e com a necessária profundidade, auxiliando o colegiado, alertando os administradores sobre riscos relevantes e até mesmo recomendando correções de rumos. Um desses comitês, voltado precisamente para o macrocampo da supervisão e dos controles, é o de auditoria e riscos. Em âmbito nacional, ou regional conforme o desenho do respectivo sistema associado, o conselho de administração dispõe ainda do qualificado apoio das estruturas corporativas de gestão de riscos operacionais, de crédito, mercado e liquidez, cuja faculdade é fruto da evolução regulamentar em homenagem, justamente, à economia de escopo – ou racionalidade organizacional – no meio cooperativo.
Além disso, com o aumento da complexidade da gestão, as análises confiadas ao conselho fiscal, para que tenham um mínimo de efetividade, dependem cada vez mais do auxílio de executivos da cooperativa na interpretação dos relatórios contábeis e gerenciais. Essa carência técnica, em diversas situações, afeta a própria autonomia dos conselheiros, comprometendo os julgamentos finais. A melhor evidência de que as suas apreciações nem sempre são precisas é o fato de inexistirem restrições em seus pareceres na quase totalidade dos casos de insucesso de cooperativas (por má-gestão, fraudes, desalinhamento econômico-financeiro, indevida exposição a riscos e outros eventos). As razões e a real extensão dos problemas costumam ser descortinados, muitas vezes a “posteriori”, sem o impulso ou a participação desse órgão fiscalizatório.
A verdade é que em um grande número de cooperativas singulares, mesmo naquelas em que não há segregação entre conselho de administração e diretoria (o regime é facultativo para as cooperativas baseadas em segmentos de pessoas físicas, em razão da menor complexidade de sua operação), e também em entidades de segundo e terceiro níveis sistêmicos, o conselho fiscal vem assumindo pouco protagonismo, embora os dispêndios com o seu “funcionamento” [falando no fator custo, há caso em que o órgão opera com os seis membros – titulares e suplentes -, todos remunerados ou com despesas funcionais devidamente ressarcidas, os quais ainda se reúnem em sessão extraordinária a cada mês, somando 24 encontros por exercício social!].
E o pior de tudo: o distanciamento entre o que vêm fazendo e o que e como deveriam legalmente cumprir o seu ofício, submete os conselheiros a um elevado risco pessoal, transformando-os em vítimas potenciais. Com efeito, não são raras as situações em que se propugna, administrativa ou judicialmente, pela sua culpabilidaderesponsabilização por prejuízos e desmandos em cooperativas, sob o argumento de que negligenciaram as suas funções ou as desempenharam com imperícia. Inúmeros já são os precedentes de condenação, até mesmo na seara penal. Em outras palavras, o modelo atual é-lhes particularmente iníquo, uma vez que se lhes exige algo que não podem entregar.
Por todas essas razões, de forma mais ostensiva lideranças cooperativistas e representantes de outros setores com atuação voltada para o meio começam a colocar em dúvida a continuidade daquele colegiado, ou até mesmo a advogar abertamente a sua dispensabilidade.
Segundo os adeptos dessa corrente, também as verificações pertinentes ao dia-a-dia da operação já constituiriam o objetivo central dos trabalhos de auditoria interna e de controles internos, confiados a profissionais das respectivas confederações, centrais (só aqui são 290 técnicos, com um orçamento anual de R$ 30 milhões) e das próprias cooperativas singulares, sem contar i) a atuação concomitante da auditoria externa durante boa parte do exercício social; ii) a gestão de riscos executada permanentemente por componentes organizacionais sistêmicos e iii) o monitoramento abrangente e ininterrupto exercido pelo Banco Central do Brasil (BCB). Ou seja, tanto o acompanhamento propriamente dito da gestão (de cunho mais estratégico), como a execução de tarefas tidas como rotineiras, e as pertinentes à avaliação/gestão de riscos e de consistência contábil, já estariam atribuídos a outros componentes organizacionais (internos ou externos), o que esvaziaria a importância do conselho fiscal.
Adicionalmente, as justificativas consideram a ausência de pré-requisitos objetivos para os candidatos; a capacitação insuficiente ou intempestiva dos conselheiros e a falta de tempo destes para o adequado exercício das funções. Por fim, invoca-se a proximidade com os administradores, que, em muitos casos, impediria o exercício independente das atividades fiscalizatórias. Aliás, não são poucos os relatos sobre a suposta “escolha” dos conselheiros pelo próprio presidente da cooperativa, sendo que em muitos casos os “candidatos” sequer estariam presentes no ato assemblear de eleição (ou de mera ratificação da preferência presidencial).
Quanto ao controle final ou superior dos atos do conselho de administração, cuja ausência poderia ser uma importante objeção à dispensa do conselho fiscal, recorre-se ao argumento da multisupervisão externa já mencionada (auditoria interna da Central, monitoramento dos riscos por entidades corporativas do sistema associado, auditoria independente e BCB) e, como última instância, à atuação da assembleia geral ordinária que, anualmente, tomaria as contas dos administradores.
Todavia, conquanto expressiva em aliados, a tese não é incontroversa. Assim como ocorre em qualquer outro campo da ação humana, também aqui a exceção se afirma. Cooperativas há em que, diante da seletividade para o acesso ao conselho fiscal; de uma tempestiva e adequada preparação de seus membros e, ainda, da independência e da autonomia no cumprimento das suas funções, o trabalho desenvolvido pelos conselheiros contribui efetivamente para uma gestão virtuosa.
Em vários outros casos, ainda, a simples presença desse tradicional órgão social é sinônimo de segurança e de credibilidade. Daí que, com argumentos consistentes, a sua permanência também tem os seus defensores. Por sinal, os patronos dessa causa podem perfeitamente invocar em reforço às suas convicções o fato de o conselho fiscal coexistir com o conselho de administração na estrutura de gestão do cooperativismo financeiro em alguns outros países, onde é mais conhecido como conselho de vigilância, embora se devam ressalvar as diferenças substanciais entre os respectivos modelos, especialmente quanto à forma de atuação aqui e acolá (no sistema “Desjardins”, por exemplo, baseado em Quebec – Canadá, o colegiado – também objeto de frequente questionamento! – costuma reunir-se a cada três meses e cuida essencialmente do cumprimento de regras de conduta pelos dirigentes e executivos das cooperativas).
O tema, já se disse – e até porque suscitado recorrentemente em fóruns mais recentes do movimento -, pede tratamento, notadamente em ambiente de intensificação da concorrência no mercado financeiro, em que o cooperativismo, no geral, está ainda bastante aquém dos índices de eficiência ostentados pelas instituições de varejo convencionais, suas principais competidoras. O cenário leva a uma única certeza: não há espaço para a manutenção de estruturas e atividades que, no final da equação, não tragam ganhos ou não agreguem valor ao empreendimento.
Diante desse contexto, respeitando as diferentes realidades do setor e obedecendo à autonomia de gestão – intrínseca ao tipo societário -, talvez uma saída conciliatória, e apropriada, fosse tornar facultativa a atuação ou pelo menos a “instalação” (de acordo com o regime já adotado na Lei das Sociedades Anônimas) do conselho fiscal em todas as instâncias sistêmicas, por meio de ajuste regulatório, mantidas as atuais responsabilidades e demais regras para os conselheiros que continuarem atuando. Como medida adicional, admitido que a não obrigatoriedade ou, então, o não funcionamento permanente, se revelem uma boa iniciativa na ótica dos atores-líderes do segmento, poder-se-ia – igualmente “de lege ferenda” – considerar a possibilidade da dispensa da homologação dos nomes dos eleitos pelo Banco Central do Brasil. Vale lembrar, a propósito, que, diante das lacunas na atual legislação, já está instalada uma controvérsia sobre a delimitação temporal do mandato dos conselheiros, circunstância que por si só já recomenda uma revisitação ao marco legal.
Ainda sobre o funcionamento facultativo do conselho fiscal previsto na Lei das S/As, a regra tem sua lógica justamente no fato de a gestão das empresas de capital ser confiada alternativamente a um conselho e a uma diretoria a ele subordinada, ou apenas a uma diretoria. A instalação daquele colegiado mostra-se mais efetiva, ou necessária, no último caso, porquanto na primeira hipótese (regime dual) a supervisão dos diretores/executivos já é da alçada do próprio conselho de administração, prescindindo, assim, de um segundo componente estatutário para o mesmo propósito. Como se vê, os modelos de gestão entre os dois tipos societários, com as últimas mudanças introduzidas na governança cooperativa, comunicam-se em grande medida, inclusive quanto à participação do órgão de fiscalização.
A via da instituição não obrigatória do conselho fiscal no mundo cooperativo-financeiro, de um lado, não retiraria o direito da sua preservação por aquelas cooperativas nas quais o colegiado, por razões diversas, assume relevância, e, de outro, não imporia a sua presença àquele grupo de cooperativas em cujo meio pouco repercute.
Por fim, com relação às cooperativas que, dentro desse (cogitado) formato, viessem a manter o conselho fiscal, ou mesmo se a ideia da facultatividade não for reputada procedente pelos líderes do movimento, cabe ainda ponderar sobre um possível redirecionamento da atuação do colegiado de modo a dar mais ênfase à verificação do cumprimento de preceitos ético-deontológicos pelos administradores e executivos contratados, campo atualmente pouco explorado pelos diferentes agentes de supervisão. Nessa seara, com efeito, uma atenção mais acentuada do colegiado poderia minimizar práticas – não incomuns – de extrapolação das funções legais, estatutárias e contratuais pelos dirigentes, caracterizadas como abuso de poder ou de conduta, normalmente em benefício próprio ou de pessoas ligadas.
Ficam as sugestões, não necessariamente como solução única a essa sensível dúvida – ou controvérsia – instalada no percurso de nossa “travessia”…!
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Ênio Meinen é advogado, pós-graduado em direito e em gestão estratégica de pessoas e autor de vários livros sobre cooperativismo de crédito – área na qual atua há 29 anos -, entre eles “Cooperativas de crédito: Gestão Eficaz – conceitos e práticas para uma administração de sucesso” (2010) e “O cooperativismo de crédito ontem, hoje e amanhã” (2012), ambos editados pela Confebras.
Parabenizo o professor por trazer a tona um assunto extremamente importante para o segmento, uma vez que o sistema passa por um processo de adequação às melhores práticas de governança coorporativa e de melhoramento da qualificação técnica dos dirigentes e colaboradores.
Resumindo, são citados os seguintes temas no reexame da importância da presença do Conselho Fiscal no segmento das cooperativas de crédito: a) sobreposição de tarefas; b) desprestígio do conselho fiscal ao longo do tempo acerca da atuação, uma vez que suas apreciações nem sempre são precisas pelo fato de inexistirem restrições em seus pareceres na quase totalidade dos casos de insucesso de cooperativas; c) novo regime dual de administração imposto para algumas cooperativas (Governança – segregação entre direção estratégia e gestão executiva); d) dispêndio com a manutenção do Conselho Fiscal (estima-se que a despesa com pagamento de cédula de presença corresponde a menos de 1,5% do total das despesas operacional mensal); e) distanciamento entre o que vem fazendo e o que e como deveriam cumprir legalmente suas atribuições; f) as pertinentes avalições/atribuições já estariam sendo atribuído a outros componentes organizacionais, o que esvaziaria a importância do Conselho Fiscal; g) ausência de pré-requisitos objetivos para os candidatos; f) capacitação insuficiente e indicação dos conselheiros pelo próprio presidente da cooperativa.
Tais argumentos são perfeitos para se promover um ajuste regulatório definindo, claramente, as atribuições dos Conselhos, pois, percebe-se que, de uma maneira geral, os estatutos sociais das cooperativas trazem em seu bojo atribuições semelhantes para os dois Órgãos Estatutários. Acrescente-se, a criação de regras visando a melhor participação dos sistemas em nível de Central em suas filiadas na seletividade para acesso ao Conselho Fiscal, tempestiva e adequada preparação dos membros para que o trabalho gerado pelos conselheiros contribua efetivamente para uma gestão virtuosa, tempestiva e adequada.
Antônio Leite.
Segundo a ONG Transparência Internacional, sediada em Berlim, dentre 176 países, o Brasil se encontra no patamar 69 com relação `a corrupção. A Alemanha ocupa o 13º lugar e os dados foram conseguidos através de 13 instituições internacionais, entre elas: o Banco Mundial, os bancos asiático e africano de desenvolvimento e o Fórum Econômico Mundial.
Diante disso, comparar o modelo alemão com o brasileiro, no que tange à atuação do conselho fiscal nas cooperativas de crédito, é algo desproporcional.
Com todo o respeito, caríssimo Dr. Ênio Meinen , sem o órgão fiscalizador independente eleito pelos cooperados, muitos não confiariam seu precioso dinheiro à instituição. Quando todas as cooperativas de crédito detiverem um conselho fiscal ideal: capacitado, educado e independente nenhuma mais irá ter problemas de liquidação por má gestão.
É o elo de confiança entre poupadores e tomadores.
Através do Fates- Fundo de Assistência Técnica Educacional e Social – o cooperativismo tem a capacidade de instruir, ensinar, adequar e profissionalizar.
Não há como igualar uma sociedade cooperativa de livre admissão a uma empresa do tipo sociedade anônima. Os interesses são diferentes.
O objetivo primordial da cooperativa é o desenvolvimento de todos os cooperados e não se deve fugir desse caminho – esta sim, a real travessia.
É ilógico pensar em uma cooperativa de crédito sem conselho fiscal. Quando se refere a economizar dinheiro; muito mais se economizaria cortando vice- presidentes desnecessários, conselheiros de administração demais e diárias infindáveis com viagens nem sempre enriquecedoras ao sistema.
Finco meu pé na necessidade do Conselho Fiscal distante da politicagem, do apadrinhamento e dos interesses escusos. A base está na participação do cooperado , evitando o efeito carona. Nos princípios da transparência, publicidade e eficiência. Na educação cooperativista e no respeito à lei e à ética.
Talvez, um dia, quando estivermos ao lado da Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia e Suécia -países menos corruptos do mundo- possa cogitar a ideia de dispensar este essencial órgão fiscalizador.
Enio, brilhante e oportuno texto. Hoje, neste momento de mudanças, podemos ter estruturas menores e precisamos ser mais eficientes.
Parabéns!