Nós podemos fazer isso. Nós podemos cooperar.
Nós vamos unir nossos talentos e habilidades para juntos criarmos algo maior”.(Sthefen R. Covey)
A autonomia das instituições financeiras cooperativas singulares, traduzida pela liberdade de fazer escolhas, tanto no campo político-societário como na seara operacional, deve ser vista como um verdadeiro axioma, uma vez que a responsabilidade principal pelo destino do empreendimento mutualista cabe aos cooperados e seus representantes imediatos. Assim, é justo que, em qualquer caso, lhes assista a prerrogativa de definir os rumos da sociedade.
Esse direito, com as limitações operacionais e outras desvantagens que o isolamento carrega, imagina-se absoluto quando os donos do empreendimento cooperativo resolvem seguir carreira solo. É o caso das cooperativas ditas “solteiras”, normalmente vinculadas a empresas ou grupos econômicos instituidores, ou, ainda, daquelas que desempenham o papel de correspondentes de instituições financeiras oficiais. Não são raros, contudo, os exemplos em que as entidades “patrocinadoras”, hierarquicamente ascendentes, ditam as diretrizes de funcionamento, restringindo sobremaneira o campo de ação dos cooperados.
Quando a cooperativa, no entanto, vislumbrando especialmente os benefícios do ganho de escala e da racionalização de estruturas, delibera pela convivência com entidades coirmãs em regime de intercooperação sistêmica, seja em dois ou em três níveis, costumam surgir dúvidas quanto à extensão do seu poder de autodeterminação.
É naturalmente compreensível que haja uma sensação de perda de espaço e de poder nessa composição institucional. Afinal, embora tenha sua raiz na Lei Cooperativista, que data de 1971, esse modelo organizacional vem sendo praticado mais intensamente apenas desde a segunda metade dos anos 1990, especialmente a partir da criação das confederações e dos bancos cooperativos. Trata-se, portanto, de uma caminhada relativamente curta, percurso no qual, todavia, processos e desenhos estruturais puderam ser (e continuam sendo) aperfeiçoados para o melhor aproveitamento possível das vantagens potenciais da convivência intercooperativa.
Embora, aparentemente, a opção pela integração horizontal e vertical com outras cooperativas ainda sugira a perda de autonomia, isso na essência não ocorre. Provavelmente, o equívoco esteja em considerar como parâmetro o grau de liberdade (supostamente) atribuído às cooperativas “solteiras”, âmbito nas quais, todavia, como já ressalvado, a “independência” muitas vezes é bastante relativizada pela presença das entidades a que economicamente submetidas.
Em verdade – afastando, por incompatível com o ambiente de intercooperação, a hipótese da “soberania” – , a autonomia e a independência, na perspectiva mais ampla de competitividade, ganham reforço qualitativo e quantitativo com a integração, notadamente quando as práticas sistêmicas respeitam o protagonismo de suas partes na construção das soluções de interesse do conjunto. Da mesma forma, o apoio corporativo não prejudica, mas estimula as estratégias de relacionamento de cada entidade singular com os seus associados e comunidade, âmbito no qual reside a essência da cooperação e a efetiva independência.
Quando a cooperativa, livremente, escolhe o caminho da intercooperação, dando vida ao 6º princípio universal do movimento associativista, agrega à sua “estrutura” áreas de atividades que são comuns a todas as entidades que fazem parte do arranjo societário-sistêmico, e que devem estar voltadas para melhorar a sua atuação junto aos associados. Em outras palavras, as centrais, as confederações, os bancos e as demais empresas/entidades especializadas devem ser reputados como extensão das unidades (de origem) que lhes dão vida, compondo nestas uma espécie de “departamento intercooperativo”.
Daí que é fundamental, de um lado, a percepção dos administradores das entidades corporativas sobre o papel que estas organizações têm de exercer (no interesse das entidades de base e de seus cooperados) e sobre a importância de envolver tempestiva e qualificadamente na construção e no debate dos projetos os representantes dos destinatários finais das soluções. De outro, a cooperativa não pode considerar as estruturas comuns como iniciativas dela desconectadas, vendo-os como “terceiros”, mas tê-las como componentes de seu próprio formato organizacional e sobre elas exercer comando. E nessa perspectiva, pena de (aí sim) aumentar os seus custos – fonte usual das discórdias intrassistêmicas -, as beneficiárias das atividades comuns devem desfazer-se na mesma medida dos respectivos componentes organizacionais locais/paralelos, exigindo em contrapartida eficiência e eficácia das soluções compartilhadas. A propósito, o verdadeiro poder não está em fazer, mas em mandar fazer
Em tal contexto, no qual a confiança é valor-chave, as bases formais devem guiar-se muito mais pelos vínculos estatutários, baseados na autorregulação, do que pelos imperativos mercantis, normalmente arbitrados no contato frio entre estranhos ou opostos. Assimilado esse conceito, e posto em execução, tanto do lado da noção de pertencimento (cooperativa em relação às demais entidades) quanto da sensibilidade para servir (estruturas corporativas diante de cada uma das partes), esvaziam-se os pontos de real ou potencial conflito e descontentamento.
Ao final da equação, olhando-se sempre o todo e não, isoladamente, esta ou aquela iniciativa, é certo que cada uma das partes terá um resultado melhor por fazer parte do arranjo intercooperativo (só assim a verticalização tem sentido!). Por outro lado, da mesma forma como os associados elegem regras de convivência no âmbito da cooperativa singular, às quais se subordinam no momento seguinte (exemplo: os dispositivos estatutários e as deliberações assembleares vinculam a todos, mesmo os discordantes), também as cooperativas singulares (e centrais, conforme o caso), nas instâncias correspondentes, tomam decisões de abrangência coletiva cujo cumprimento pelas partes é imprescindível para a harmonia do grupo e a própria sustentabilidade do sistema associado.
Por vezes, sempre respeitada a transparência na condução dos debates e permitido o amplo direito de argumentação a todos os interessados, a deliberação não é unânime, situações nas quais há que se aceitar a preferência da maioria (exatamente como acontece na cooperativa singular, em conformidade com o princípio universal da “Gestão Democrática”).
Obviamente que a zona de não-convergência será tanto menor quanto mais fiéis aos interesses dos sócios forem as iniciativas propostas nos fóruns sistêmicos. Impõe-se, por conseguinte, especial atenção às particularidades regionais e às características dos diferentes grupos associativos envolvidos. Ou seja, a “singularidade” cooperativa, que nada tem a ver com “individualismo” (postura anticooperativa), há de ser respeitada em sua máxima dimensão. Daí que é fundamental estejam os administradores corporativos e suas equipes familiarizados com a realidade e as necessidades da base. Para tanto, o diálogo constante com os representantes das cooperativas (o que na literatura se designa “circulabilidade”) é uma forma de “encurtar o percurso” e evitar desgastes. Em outras palavras, escutar, permanentemente, o que os diversos atores têm a dizer ou propor é da essência do convívio sistêmico. Não se pode, jamais, subjugar a capacidade de inovação ou tolher o entusiasmo criativo dos dirigentes ou executivos das partes. Isso seria letal!
É claro que nem todas as ideias são exequíveis ou viáveis, casos para os quais os responsáveis pela “pauta corporativa” têm de externar evidências inequívocas a desaconselharem o seu prosseguimento, mesmo que momentâneo, inclusive apontando eventuais razões de ordem legal ou regulamentar quando for a hipótese. Não basta a simples alegação de que “tecnicamente não dá” (sem declinar os fundamentos); que “o mercado anda no sentido contrário”; que a demanda é operacionalmente muito complexa; que é inviável do ponto de vista econômico-financeiro (sem demonstrá-lo), e assim por diante…
Entretanto, se os argumentos técnicos, contrários à proposta, forem comprovadamente plausíveis, é de se esperar que o proponente ou demandante se sensibilizem. De igual forma, é nocivo ao convívio sistêmico deduzir divergências em fóruns públicos (não cooperativos), sobretudo as já apreciadas internamente, ou submetê-las a julgamento de terceiros. Ainda, os requerimentos levados a debate por qualquer dos membros devem visar ao bem, pena de a invocada “autonomia” ou a pretensa “singularidade” servirem como veículo para lograr resultados incompatíveis com os objetivos institucionais ou antagônicos ao espírito cooperativo. Por sinal, a “desobstrução de caminho”, para facilitar o
não-certo, é (tem sido) algo tentador para o abandono sistêmico…
Um enlace sistêmico duradouro não admite verdades absolutas ou conclusões imutáveis e nem tolera injunções ou ordens (de “cima para baixo” ou de “baixo para cima”). Nessa atmosfera, o segredo é compartilhar ideias e propostas, submetendo-as, sem reservas, ao processo dialético. E as soluções que decorrem dessa construção, justamente pelo seu caráter de não-perpetuidade, exigem também constante revisitação, para que possam ser trazidas para a realidade de tempo em tempo.
A proposito, no complexo e sensível campo da coabitação organizacional há atitudes – algumas delas já anteriormente reportadas – que se destacam como autênticas virtudes sistêmicas, determinantes para a preservação do “matrimônio” intercooperativo. São elas:
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somar em vez de dividir;
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escutar as partes e com elas dialogar, e não, simplesmente, lhes infligir pontos de vista;
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compreender que, ao lado dos benefícios individuais, há as obrigações coletivas;
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ceder diante do interesse geral (o todo é mais importante que o particular);
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participar dos fóruns em que se discutem os assuntos de interesse comum;
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assumir
as responsabilidades e não (tentar) transferi-las; -
honrar as deliberações do conjunto, ainda que o desfecho seja particularmente adverso;
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agir prontamente, adotando ou cobrando medidas corretivas, quando alguma parte desalinhar-se das orientações corporativas;
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confiar nas pessoas e nas entidades;
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compartilhar ao máximo as estruturas e as atividades comuns às partes.
A falta de qualquer desses atributos potencializa a infidelidade e torna a coalizão improvável!
Em síntese, a participação em sistema cooperativo, para que surta os efeitos almejados pelos membros e seja sustentável, requer compromissos e ações que conciliem direitos e obrigações entre as partes. Na versão de Alphonse Desjardins (pioneiro do cooperativismo financeiro nas Américas), deve-se propugnar pelo “equilíbrio entre a integração e a autonomia“. Só assim pode-se, colher e preservar, individualmente, as prerrogativas da integração horizontal e vertical, medidas pelo acréscimo de eficiência operacional e pela maior visibilidade de mercado, resultantes da combinação entre ganho de escala, redução de custos (especialmente pelo compartilhamento de atividades de apoio ou complementares ao negócio e otimização de investimentos), expertise profissional, portfólio diversificado e qualificado, rede ampliada, tecnologia de ponta e marca forte.
E é nisso tudo que se revela, de fato, o trinômio liberdade, autonomia e independência da cooperativa singular. Com efeito, dispondo de portfólio amplo e de qualidade – impulsionador de receitas -, e (re)alocando eficazmente as atividades de retaguarda nas organizações de segundo e, sempre que possível, terceiro níveis – movimento redutor de despesas, contanto que simultaneamente desfeitas as estruturas individuais -, as entidades de base têm “argumentos”, pessoas e tempo generosos para fazer relacionamento, conhecer melhor os associados, com eles intensificar negócios e atrair novos membros.
Vale ressaltar que o grau de liberdade de cada cooperativa está na razão direta do nível de dominância que exerce sobre o mercado local e o seu público de interesse, o que lhe permite identificar particularidades e oportunidades e definir estratégias voltadas aos atuais e futuros cooperados. O vínculo sistêmico, reitere-se, não interfere adversamente nesse relacionamento. Pelo contrário, vem em apoio à aproximação.
Respondendo, portanto, à indagação objeto do tema-título deste artigo: a intercooperação assentada em processos adequadamente dimensionados à participação e a responsabilidade de todos e sensíveis às singularidades, muito antes de ferir a autonomia das partes, impulsiona-a e garante a verdadeira independência do empreendimento cooperativo. Cada vez mais improvável, aliás, a competitividade – ou mesmo a sobrevivência –, senão pela reunião de forças, motivo pelo qual os arranjos legais e regulamentares (v.g., Lei Complementar 130/09, começando pelo seu preâmbulo) tão explicitamente vêm endereçando incentivos em tal sentido.
Na aplicação da fórmula genuinamente sistêmica, lembrando da conhecida máxima aristotélico-matemática, não há dúvida que “o todo é maior que a simples soma das suas partes“.
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Ênio Meinen é advogado, pós-graduado em direito (FGV/RJ) e em gestão estratégica de pessoas (UFRGS) e autor/coautor de vários livros sobre cooperativismo de crédito – área na qual atua há 30 anos -, entre eles “O cooperativismo de crédito ontem, hoje e amanhã”. Atualmente, é diretor de operações do Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob).
Caro Ênio, em minha opinião tudo perfeito e alinhado ao contemporaneo (em teoria). Já na prática, a questão ganha em complexidade pelas razões descritas em seu texto. Minha preocupação enquanto cooperativista refere-se ao nível de Transparência aplicada não só no trato das questões sistêmicas, mas também, nas singulares – frente a seus associados (principais interessados). Torço para que as decisões estejam realmente sendo pensadas e deliberadas em prol dos verdadeiros “donos” da(s) Cooperativa(s)/Sistema(s) – os associados. Porém, neste último “processo” assemblear (prestação de contas 2013), infelizmente vi questões relevantes sendo apresentadas e deliberadas com elevado grau de superficialidade sem o devido espaço para questionamentos. Toda via, em minnha visão, Sistema “forte” só o é, se as cooperativas que dele fazem parte, também o sejam. Saudações Cooperativistas.
Caro Ênio. Vindo de você não esperava outro posicionamento senão o colocado acima.É tanto verdade o que você escreve que é só olhar para cooperativas que não estão em sistemas, financeira ou de qualquer outro ramo, que vamos ver a dificuldade de se alavancar e crescer.
Parabéns e vamos ver se nossos dirigentes da Confederação, Bancoob, Centrais, coloca isto em pratica.