“Os operadores do direito têm a missão de adoçar, pelo calor do sentimento, o duro metal das leis, a fim de melhor o adaptar à vida, à realidade humana”. (Piero CALAMANDREI, jurista italiano)
Em abril de 2009, há 10 anos, o cooperativismo financeiro brasileiro conquistava a sua “autonomia” regulatória com a promulgação da Lei Complementar nº 130. E o que isso significa no terreno das grandes implicações de ordem jurídica?
O principal efeito, sem dúvida, é o de que sempre que alguém queira pronunciar-se sobre cooperativas financeiras (de ”crédito”) em sua dimensão legal (em sentido amplo) terá de ter a LC 130 como primeira referência. Por exemplo, quando o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil ou qualquer outro órgão ou autoridade oficiais forem propor ou apreciar medida regulamentar sobre o setor, deverão examinar a compatibilidade da proposta de regulamentação ou a sua interpretação com as diretrizes da LC. Da mesma forma, cumprirá ao magistrado, quando estiver a frente de uma demanda judicial envolvendo cooperativa financeira, ou a qualquer autoridade administrativa que for solucionar controvérsia acerca da matéria, consultar inicialmente o teor do novo expediente legal. É este também o dever do advogado (cooperativista), ao orientar os seus clientes ou quando peticionar ao juiz ou outra autoridade pública. Por fim, internamente, quando os líderes ou executivos do cooperativismo financeiro debruçarem-se sobre modelos de governança ou sobre aspectos operacionais, haverão de ter a LC 130 como guia.
Não se pode esquecer, também, que a Lei Complementar 130 vem atender à determinação de que trata o art. 192 da Constituição Federal (regulamentação das atividades dos agentes do sistema financeiro nacional), e visa a dar cumprimento ao art. 174, §2º, da Carta Magna (apoio e estímulo ao cooperativismo).
Adicionalmente, lembrando dos princípios de hermenêutica (ramo da filosofia que se debate com a compreensão humana e a interpretação de textos escritos), é preciso ter em conta de que a Lei Complementar é uma lei especial e recente, e por isso prevalece sobre leis gerais ou anteriores que tratem de matérias coincidentes. Aliás, em toda disposição do direito, o gênero (menos relevante) sucumbe diante da espécie (de importância prevalente). Quer dizer, se, por hipótese, houver incompatibilidade (aparente ou implícita) entre a LC 130 e a Lei Cooperativista (Lei 5.764/71), aquela se sobrepõe a esta. Ou seja, a pesquisa para as possíveis respostas envolvendo indagações ou dúvidas sobre cooperativas de crédito, há de começar, sempre, pela LC 130. Quando ela não tiver uma resposta convincente ou suficiente, o operador poderá buscar auxílio nos demais diplomas que se conectem ao setor: Lei Cooperativista; Código Civil; Lei Bancária; Lei das Sociedades Anônimas e outros. Mas, a integração – mediante consulta a outras leis – terá de harmonizar-se, sempre, com o /espírito geral da LC 130, traduzido pelo incentivo e apoio ao cooperativismo financeiro, notadamente nos campos operacional, de governança e quanto aos papeis reservados aos diversos entes que compõem o sistema associado.
Isso, obviamente, não quer dizer que a Lei 5.764/71, por exemplo, deixou de ter importância para as cooperativas financeiras, ou que ela tenha sido revogada pela nova lei. Longe disso! Inúmeras são as situações, especialmente no campo societário, que, não tratadas na LC 130, continuam reguladas pela Lei Cooperativista (ex.: funcionamento da assembleia geral). Ademais, é orientação, formal, de hermenêutica, entre nós, a não-revogabilidade das leis anteriores (salvo nas situações em que o novo expediente o preveja), bem como o esforço na busca da convergência ou convivência das leis editadas em momentos diferentes (Decreto-lei 4.657/42 – LICC, art. 2º… §1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. §2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior).
Outra diretriz que tem de ser observada é a da busca, na leitura/interpretação do teor da LC, do real significado (metas, fins e objetivos últimos) dos seus dispositivos. Muitas vezes, e aqui não é diferente, os artigos, parágrafos e incisos, especialmente se lidos isoladamente, não são tão explícitos quanto aos seus efeitos ou não se bastam em si. De resto, a dinâmica social requer que alinhemos o sentido da norma com os valores presentes, lembrando que nem sempre o legislador é ágil o suficiente para atualizar os textos legais.
O que não pode é o aplicador da lei (autoridade pública ou agente particular) basear-se unicamente na interpretação literal ou gramatical, que é apenas um dentre os vários meios de se buscar o correto sentido e alcance da norma jurídica, sendo esse processo exegético “incomparavelmente inferior ao sistemático e ao que invoca fatores sociais”, na lição de Carlos Maximiliano (nosso principal doutrinar nesse campo).
Falando, ainda, em hermenêutica e aplicação do direito, entre os métodos ou processos mais prestigiados pela doutrina contemporânea estão:
1. O Histórico-Evolutivo: ensina que diante da impossibilidade de alterar com intervalos breves os textos positivados (pense no tempo de tramitação dos projetos no Congresso Nacional…), adapta-se o Direito, pela interpretação, às exigências sociais imprevistas, às variações sucessivas do meio. O intérprete não cria prescrições, nem posterga as existentes; deduz nova regra, para um caso concreto, do conjunto das disposições vigentes, consentâneas com o progresso geral (sustentado por Karl Von Savigny);
2. O Teleológico: pressupõe a interpretação conforme o fim estimado pelo dispositivo ou pelo Direito em geral (lição de Rudolf Von Jhering);
3. O Sociológico:leva o juiz a aplicar o texto de acordo com as necessidades da sociedade contemporânea (defendido por Josef Kohler, Alemanha, e por Francesco Degni e Nicolao Coviello, na Itália);
4. O Sistemático: consiste em comparar o dispositivo interpretado com outros do mesmo diploma ou de leis diferentes que possam ter relação com idêntica matéria. Esse processo parte do pressuposto de que o Direito constitui uma ampla plataforma de normas interdependentes, distribuídas pontualmente por diferentes expedientes no tempo. Assim, a análise deve ser sempre sistêmica, global, para que se apreenda o verdadeiro sentido de cada oração, expressão ou simples vocábulo (têm inúmeros difusores).
Em síntese, quando lidamos com a LC 130 – reitere-se, a nossa referência na seara legal do cooperativismo financeiro –, não podemos ser econômicos ou por demais apressados na busca das soluções, e há que se evitar a (pouco simpática e indesejável) “discricionariedade”. É preciso olhar para a Constituição Federal, notadamente para o seu art. 174, §2º; para os princípios e valores do cooperativismo; para a repercussão social desta ou daquela interpretação; para os efeitos práticos da solução, ou seja, o quanto é benéfica ou o quanto pode ser nociva/iníqua ou trazer transtornos para os destinatários.
Enfim, os que lidamos com o cooperativismo financeiro, cumpre-nos, indistintamente, empregar sempre o sentido que mais se aproxime do “apoio e do estímulo ao cooperativismo” o que, por feliz coincidência, rima com justiça social, aspirações de cidadania e empreendedorismo!
Ênio Meinen, diretor de operações do Banco Cooperativo do Brasil (Bancoob), coautor do livro “Cooperativismo financeiro: percurso histórico, perspectivas e desafios” e autor de “Cooperativismo Financeiro: virtudes e oportunidades – Ensaios sobre a perenidade do empreendimento cooperativo” (Confebras, 2016), obra esta também versionada na língua inglesa.
Obs.: Republicação, com atualização do texto.
Vale lembrar que quando o Congresso suspendeu a CPMF, anos atrás, Lula, então presidente da República, promoveu um enorme aumento do IOF dois ou três dias após e se gabou de que a medida cobriria a perda do imposto extinto. Ficou esse encargo para os já endividados, particulares e empresários brasileiros pagarem. E não se falou mais nisso.